A essência do cristianismo: encarnação de Deus no homem

O cristianismo nasce no Natal, com o nascimento de «outro Deus», isto é, de uma nova imagem de Deus. Depois de ao longo da revelação bíblica o povo de Israel ter captado o Deus da pessoa (o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob), o Deus para a pessoa (para libertar a pessoa no êxodo da escravidão do Egipto) e o Deus com a pessoa (o «Deus connosco»: Immanuel), finalmente Ele revelou-se e foi captado como o Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. A fé cristã convida a ver Deus encarnado num ser humano e a contemplar Jesus como Filho de Deus. Em Jesus, Deus tem um «encontro imediato» connosco: torna-se presente em nós. A encarnação de Deus em Jesus diz-se em termos de relação Pai-Filho, estabelecida pelo Espírito de Amor: Jesus é o humano em quem “habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Col 2,9). De facto, pôde dizer: “quem me vê vê o Pai” (Jo 14,9), “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30), “Eu estou no Pai e o Pai está em mim” (Jo 14,10). Jesus é “a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15). Os que o conheceram podiam pela fé ver o Filho de Deus e o rosto de Deus humanado. Então a tríade nuclear da fé cristã exprime assim a relação salvífica de Deus Pai, Filho e Espírito com os humanos: Deus encarna no Filho aparecendo como Pai, o Filho redime a humanidade aparecendo como salvador, a humanidade é introduzida no Reino de Deus pelo Espírito vivificador. Porque Deus foi captado como Amor dinâmico em si e em relação com a humanidade, é simultaneamente acima de nós (Pai), ao lado de nós (Filho) e dentro de nós (Espírito). Como consequência deste mistério de comunhão, a partir da encarnação de Jesus a relação do homem com Deus concebe-se e exprime-se de maneira nova, em termos de filiação: “Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus” (Rm 8,14). “E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama «Abba – Pai!». Deste modo, já não és escravo, mas filho” (Gl 4,4-7). O discurso cristão sempre pôs a encarnação de Deus no centro da sua fé, como a visão mais original de Deus relativamente à de outras religiões, definindo tal novidade mesmo em relação à religião de Israel, da qual é continuidade e descontinuidade. E o específico da interpretação cristã da vida humana consiste em relacioná-la com a encarnação de Deus na pessoa de Jesus. Esta visão da relação do homem com Deus importa muito. A encarnação não é só o resgate mas também a realização suprema da corporeidade e do ser humano. Desde a encarnação do Deus transcendente na pessoa de Jesus, o próprio corpo tornou-se epifania do divino: o divino desposou a corporeidade humana, com as suas leis e limitações. O humano como tal tornou-se espaço privilegiado do encontro com o divino. Pela encarnação de Deus na humanidade de Jesus, realiza-se em pleno o cruzamento do transcendente com a imanência: o Deus transcendente faz história com os humanos, sem se tornar vulnerável, porque mantém a sua alteridade. Deus salva os humanos, não de longe, na sua solidão sublime e imperturbada, mas no terreno e na carne deles. As leituras gnósticas e ‘docetistas’ não são senão o extremo radical duma compreensão minimalista da encarnação; testemunham a dificuldade de admitir que o Deus transcendente tenha podido tomar corpo e que o corpo seja capaz de Deus. Pelo contrário, o cristianismo torna-se profundo ao explorar todo o sentido da encarnação. A nossa tendência para a transcendência entende-se como realização plena do corpóreo, não como sua negação. Uma espiritualidade cristã que não valorize o corpo não pode depois respeitar e amar a pessoa. Compreende-se assim o desprezo a que os gnósticos votavam a matéria, a corporeidade e a própria pessoa. Para dar valor à vida definitiva, é preciso valorizar a vida corpórea, encarnada, que desde a encarnação de Jesus é sagrada. Como diz o cardeal J. Ratzinger na Introdução ao cristianismo, ao ver o Lógos de Deus encarnado no homem Jesus, a fé cristã escolhia uma imagem de Deus, fazendo uma purificação com audácia: optava pelo Deus dos filósofos contra os deuses das várias religiões antigas. Era a opção pelo lógos, pela razão contra o mito mal entendido, isto é, contra o mito entendido à letra, como se existissem diversos deuses para explicar as diversas realidades da vida humana. Para a fé cristã, todas as realidades têm fundamento num único Deus. Mas, ao decidir-se pelo Deus dos filósofos, a fé cristã sentia que Ele se manifestou e falou aos humanos na pessoa de Jesus. Com isso, conferia ao Deus dos filósofos um sentido totalmente novo. Ao tirá-lo da esfera puramente académica, transformou-O profundamente. Esse Deus que era visto pelos filósofos como o conceito supremo e conclusivo, como o ente em si e o puro pensamento a girar eternamente num círculo fechado em torno de si mesmo sem chegar jamais até ao ser humano…, esse Deus, cujas eternidade e imutabilidade puras excluíam à partida qualquer relação com o mundo mutável, passava a aparecer agora, para a fé cristã, como Deus dos homens e amor criativo, que tomou a iniciativa de se dar gratuita e totalmente para arrancar os humanos à sua finitude radical. Nesse sentido, a fé cristã capta o que experimentou Pascal na inolvidável noite de luz em que escreveu num bilhete com o título Fogo: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob, não dos filósofos e sábios. Deus de Jesus Cristo… Certeza, sentimento, alegria, paz. Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te. Alegria. Alegria. Lágrimas de alegria”. Acostumado à ideia de um Deus identificado com o pensamento matemático, Pascal teve a experiência da sarça ardente, da qual – segundo o narrador bíblico – se fez ouvir um nome revelado a Moisés, pelo qual entrava no mundo do ser humano como Deus para as pessoas: “Deus continuou a dizer a Moisés: Assim dirás aos israelitas: Yahvé [Aquele que existe], o Deus dos vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacob enviou-me a vós. Este é o meu nome para sempre: por ele quero ser recordado e invocado de geração em geração” (Ex 3,15). Moisés aparece aqui como mediador e executor do plano libertador concebido por Deus: “Vai, eu te envio ao Faraó, para que tires o meu povo do Egipto” (Ex 3,10). Ao fazer encarnar o Lógos-Palavra-Projecto (João 1), Jesus tornou-se o perfeito mediador entre Deus e os humanos e o realizador definitivo desse Projecto salvífico de Deus. Que há de novo no Deus encarnado em Jesus e revelado por ele? Nada e tudo. É o mesmo Deus que o de Abraão e de Moisés. Mas a luz é nova. E esta torna tudo novo. É a experiência de que o Deus dos filósofos é totalmente diferente daquilo que d’Ele pensaram os filósofos, e que esse Deus, que é a Verdade por excelência e o fundamento de todo o ser, é também o Deus da fé e o Deus dos humanos: é o Deus do amor, é Amor. Neste ponto, a mensagem do evangelho e a imagem cristã de Deus vêm ao encontro da filosofia e dizem que o amor é mais sublime do que o pensamento puro. O pensamento absoluto é amar, dar-se ao outro para se transcender a si próprio no outro. Esse Amor manifestou-se definitivamente ao encarnar em Jesus. Por isso, o cristianismo é humanismo, porque permite a divinização do ser humano ao este acolher a riqueza do amor de Deus no humano Jesus. Pe. Armindo Vaz (Universidade Católica)

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