A Dinâmica da festa em situação de e/imigração

Policarpo Lopes, Professor da UAL A festa é uma instituição central do universo cultural dos indivíduos e formações sociais em qualquer área socio-cultural. A sua morfologia apresenta necessariamente uma pluriformidade multifacetada, mas a sua dinâmica está marcada, por um lado, pelo encontro, pelo ajuntamento, pela memória e celebração duma temporalidade fundadora e, por outro lado, pela auto-representação e teatralização da vida quotidiana, articulando mito, rito e exaltação colectiva. O que significa que ela é indissociável da quotidianeidade dos indivíduos e grupos sociais. Na situação de e/imigração, ela emerge no duplo espaço tempo-tempo que estrutura a vida quotidiana dos indivíduos, ou seja no país de residência e trabalho e na terra de origem. Nos países de residência, os primo-migrantes assim como as gerações nascidas da e na imigração são invadidas pela dinâmica da festa : por ocasião da celebração dos acontecimentos e ritos de passagem (nascimento, adolescência e casamento), em momentos que o imaginário colectivo associa à transição dos ciclos agrários e cósmicos como o S. Martinho, os Santos populares bem como no Natal e na Páscoa. Mas é em torno do 13 de Maio, que a festa irrompe duma forma vulcânica, em quase todas as comunidades migrantes. Com rituais de peregrinação realizados em santuários marianos nas diferentes regiões, num ambiente de grande exuberância e de exaltação colectiva, reactivando os grandes suportes existenciais e institucionais da sua identidade (música, gastronomia, sociabilidades) reactualizam os acontecimentos fundadores de Fátima, que progressivamente se tornou o “Totem” de Portugal e dos portugueses migrantes. Nestas festas participam não só várias dezenas de milhares de portugueses dispersos pela região mas também um número significativo de representantes das igrejas locais, frequentemente até ao mais alto nível, não esquecendo os dignatários da Igreja de origem. No tempo de férias, a dinâmica da festa entra em ebulição um pouco por toda a parte nas diferentes regiões e comunidades de Portugal. Para a primeira e segunda geração a festa da comunidade de origem é o factor de regulação do tempo vacante na terra natal. Os banhos aquáticos e as exposições solares nas praias são organizados em função da presença na festa. Nela participam activamente não só nos ritos apolinianos e dionisíacos mas também na preparação e organização da festa. Para além da festa do Santo patrono da terra de origem, a presença dos imigrantes nas festas e romarias da região é uma exigência incontornável e uma realidade de grande visibilidade. Porém, a dinâmica da festa no tempo vacante na terra de origem, está ainda associada à celebração dos ritos de passagem que continuam a ser celebrados preferencialmente no quadro da comunidade de origem no seio da família. A estes momentos festivos adiciona-se habitualmente a passagem, em família ou em grupo, pelo Santuário de Fátima. A peregrinação aniversária de Agosto continua marcada pela presença massiva de imigrantes. No contexto de obsolescência do religioso provocado pela secularização e laicização e de desafeição generalizada pelo universo simbólico da igreja, os rituais apolinianos formalizados pela lógica do religioso instituído perderam peso e influência na maneira de viver a festa pelas classes populares em favor dos rituais dionisíacos. Mas, tanto uns como os outros na sua matriz original estão profundamente marcados pelo sagrado e pela sacralidade. É na conjunção dos rituais desta dupla natureza que se recria a vida, se renova a ordem e se refaz o laço social. Efectivamente, a festa enquanto instituição central do imaginário colectivo assume uma multifuncionalidade. No contexto de expatriação – deslocação/impatriação no seio dos fluxos migratórios sobressai a função de regulação e reactivação do processo de reconstrução da identidade dos indivíduos profundamente destruturada pela situação de imigração. Como elementos estruturantes deste processo salientamos: a refundação do laço social nas suas diferentes malhas (família, grupo, comunidade local, regional e nacional). Através do encontro num contexto de efervescência colectiva os individuos refazem e vivem relações e interacções alternativas às que vivem no dia a dia marcadas pelo constrangimento, pela despersonalização, pela atomização e pelo não-reconhecimento social; a revivescência dos recursos e suportes simbólicos de identidade e pertença, tanto de carácter religioso como de natureza dionisíaca. Esta reactivação dos dispositivos existenciais e institucionais de identidade e pertença na presença dos outros semelhantes com a mesma linhagem e dos outros diferentes não só validam a crença mas também reactivam a consciência de própria identidade e pertença. Se nos países de imigração é mais explícita a reactivação dos grandes suportes existencias e institucionais da auto-imagem e pertença, na terra de origem verifica-se mais um mergulhar nas origens ou a descoberta pelas novas gerações das próprias raízes. No contexto de mundialização, onde o peso da utopia da homogeneização cultural pilotado pelo capital financeiro é irresistível, o direito à diferença, à singularidade, ao enraizamento, ao calor emocional retoma um grande vigor e funciona muitas vezes como contra-utopia. A festa em toda a sua complexidade aparece-nos, pois, como um dispositivo exponencial para responder a esta exigência cada vez mais intensa de reflexão identitária. Até há pouco, o reflexo identitário era a arma do pobre, hoje, está a generalizar-se um pouco por toda a parte. Importa saber revalorizá-lo numa perspectiva cultural e pastoral. A fixacção identitária parece-nos, pois, o grande desafio à capacidade de invenção não só dos agentes culturais mas também pastorais.

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