A democracia é um bem que se preserva pelo uso…

Luís Manuel Pereira da Silva, Diocese de Aveiro

Na hora de votar, sou um eleitor exigente. Parto do princípio de que a política é condição de todo o ser humano, enquanto indivíduo que vive em sociedade, certo que estou da relevância do ato de votar que não consiste, apenas, na determinação sobre aspetos de ordem económica, mas sobre toda a vida em comum. O meu voto decide-se em resultado de pressupostos formais e materiais.

1 – Formalmente, parto sempre do pressuposto de que votar é um direito tão dificilmente conquistado e sempre tão fragilmente garantido que não o podemos desperdiçar, sendo que, matematicamente, é certo que, quanto maior for a abstenção, maior é o poder de poucos. E tenho, ainda, em conta que, para estarmos, em consciência, legitimados para exercer a crítica perante as decisões políticas, temos de nos comprometer com o processo de escolha.

No que concerne às linhas mestras das opções a sufrágio, oriento o meu voto por alguns pontos de partida que procuro ver refletidos nos programas.

2 – Guio-me pelas minhas convicções e não pelo ‘sound bite’ momentâneo, sabendo que ninguém (direita ou esquerda) tem o exclusivo da democracia ou da ditadura. Houve, e há, no mundo, ditaduras e democracias de direita e de esquerda. A democracia é um bem que se preserva pelo uso.

Com este pressuposto, procuro não me deixar ‘contaminar’ pelos preconceitos em que, tantas vezes, algum modo de discutir política é enredado, desenvolvido de forma ‘fulanizada’ ou sem objetividade. Discuto ideias; não voto com base em quem lidera. Os partidos, na minha perspetiva, são muito mais do que os seus líderes, estando convicto de que têm visões diferentes do papel do Estado e da sua relação com a sociedade. Voto, por isso, não com base numa ‘fulanização’ da política, mas com base nos ideários e no que se reflete nos programas políticos.

3 – Neste quadro, sou um eleitor atento ao reconhecimento de que a sociedade é anterior ao Estado, que este deve respeitar, evitando sufocar, abafar ou absorver em si toda a iniciativa. Penso o Estado como o garante da justiça nas respostas, mas sem ter de ser ele o promotor de toda a iniciativa. O princípio da subsidiariedade é, para mim, um dos mais relevantes nas opções eleitorais que sigo. Sou particularmente sensível aos monopólios (sejam privados, sejam de Estado), pois temo, sempre, a perversão das condições de vida em sociedade, gerando injustiça, por aquela estar controlada por poucos (seja pela via do poder económico, seja pela via do poder institucional). Neste contexto, estou atento, neste momento, ao que os programas se propõem fazer, por exemplo, no que concerne ao pré-escolar: que papel vai ser garantido às IPSS, no imediato e no futuro (vai o Estado absorver, progressivamente, toda a oferta pública, numa lógica de que ‘público’ significa ‘exclusivamente estatal’?)? E as famílias? Que voz vão ter na decisão sobre a educação dos seus filhos, nessa fase tão precoce? Vai ser o Estado a assumir, paternalisticamente, a educação das crianças, com caráter obrigatório, ou respeitará a subsidiariedade, de que falam os documentos jurídicos europeus e a nossa Constituição?

4 – Sou particularmente sensível ao princípio de que a vida e a morte são irreversíveis, enquanto as condições de vida são reversíveis. Não me revejo em programas que conferem ao Estado ou reconhecem aos indivíduos o poder sobre a vida e a morte dos cidadãos, seja qual for o pretexto. Não escolho, por isso, programas que defendam a pena de morte, o aborto ou a eutanásia como práticas legítimas e aceitáveis pelas leis do Estado. Nisto, sigo o pensamento de Gustavo Zagrebelsky, presidente do Tribunal Constitucional Italiano, que defende que as democracias críticas se autoimpõem o limite de não se reconhecerem o poder de decidir sobre a vida e a morte dos seus cidadãos.

5 – Defendo uma ideia de Estado que também se autolimita (como descrevem, de forma brilhante, os autores de ‘Porque falham as nações’, D. Acemoglu e J. A. Robinson) contra os tiques de autoritarismo e de totalitarismo (‘parasitismo’, na linguagem daqueles autores), autolimitação que pressupõe um Estado que não sabe tudo e que, por isso, tem a sociedade como parceira. Um Estado que não sufoca nem abafa a sociedade, mas está atento aos mais frágeis (os idosos, os desempregados, os sem-abrigo, as pessoas portadoras de deficiência, etc.), promovendo sinergias para que a sociedade se organize na procura de respostas e aqueles se autonomizem, de modo a não ficarem ‘agarrados’ a dependências perenes. Esta autolimitação entendo-a, também, como garante perante as tentações da corrupção e do nepotismo. Só uma autêntica divisão dos poderes pode assegurar que quem tem o poder não o exerce despoticamente.

6 – Sou, também, um eleitor atento aos tiques de laicismo. A conquista feita pela nossa Terceira República tem de ser escrupulosamente defendida. Se a Primeira República foi laicista (teve uma atitude agressiva para com a religião) e a Segunda nem sempre conseguiu o equilíbrio de respeitar a diversidade religiosa, a Terceira República teve o cuidado de não escrever na Constituição as palavras ‘laico’ e ‘laicidade’, que poderiam favorecer equívocos. A ausência destes termos, na nossa Constituição, é sinal de que a separação entre o Estado e as Igrejas se deve, não a uma preocupação de neutralidade e indiferença, mas sim a um esforço de garantir que, entre o Estado e as Igrejas, há uma cooperação que não será de privilégio, mas de respeito pela liberdade religiosa. É, aliás, assim que penso dever ser, de facto, lida a visão constitucional sobre esta matéria. A III República não é indiferente para com as Igrejas (nem o poderia ser, dado que elas expressam o sentir e palpitar do povo), mas coopera com elas, com justiça e respeito, pelo bem dos cidadãos e da sociedade. Estado e sociedade devem cooperar pelo bem dos cidadãos, pessoas que são o centro e o fim de toda a política. Visões políticas autossustentadas e autocentradas suscitam, em mim, reservas e são, na minha perspetiva, o início do fim de um regime. É, por isso, que votar é tão importante. Dá sinal e ‘moraliza’ a ação política, que, assim, presta contas e regressa à fonte do poder, que é a decisão do povo, ao serviço do bem de toda a pessoa e da pessoa toda.

7 – Os tiques de laicismo vêm, muitas vezes, disfarçados de limitação da ação da família, matéria que me inquieta, na medida em que é notório que, quando esta falha, os sinais de agressividade, deriva e sem-sentido nas crianças e jovens são particularmente visíveis. O Estado que se autolimita sabe que não é anterior à família, mas que esta é, pelo contrário, anterior a ele, como o deverá reconhecer uma leitura sem preconceitos sobre o que afirma a Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando sustenta que ‘A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.’ (Art.º 15) A tentação de limitar esta insubstituível função da família é notória no descuido para com as leis laborais que estilhaçam os horários das vidas familiares ou na tentação de esvaziar o papel educativo das famílias, entregando-o às escolas. No que concerne a esta matéria, procuro ver como é refletida nos programas a relação entre o Estado e a família na promoção da educação das crianças. E, naturalmente, como professor, preocupa-me a atenção ao papel insubstituível dos docentes e às condições em que a sua ação é exercida, de forma criativa, mas também respeitosa e em ‘cumplicidade’ com as famílias. Reforçar a autoridade e o respeito pela missão docente, centrando-a na ação pedagógica, em vez de na burocracia (que, tantas vezes, parece pressupor uma desconfiança para com o docente), é sinal de uma sociedade desenvolvida e a projetar-se, com segurança, no futuro. Como professor de EMRC estou, ainda, particularmente consciente de que os valores ético-morais devem ser promovidos em estrito respeito pela matriz familiar, como ocorre com a disciplina que leciono, escolhida, positivamente, pelos pais. Um modelo, aliás, que o Estado deveria repercutir, escrupulosamente, sempre que o assunto são questões de natureza ético-moral: aos pais cabe, constitucionalmente, o direito e o dever de educar, pelo que o que não é de estrita natureza científico-técnica deverá ser promovido com o consentimento familiar.

8 – Termino com a manifestação de uma secreta esperança: a de que se opere uma revisão no sistema eleitoral, que o torne mais justo e em que, um dia, por exemplo, o voto branco ou nulo se possam repercutir em lugares vazios no parlamento, até ao limite constitucional dos 180 deputados efetivos, pois considero que essa seria uma mudança, ao nível do sistema eleitoral, que diminuiria o potencial de movimentos antidemocráticos, dado que a expressão em votos nulos e brancos repercutiria parte significativa da insatisfação perante as propostas a sufrágio. É um desiderato. Quem sabe se, um dia, se reconhece a pertinência desta ideia!

Uma outra ideia que preconizo e gostaria de ver discutida, em sede de revisão do sistema eleitoral, é a que propõe que o número de deputados, por círculo, se calcule com base no número efetivo de votantes e não com base no número prévio de eleitores. Considero que estas duas propostas poderiam contribuir para diminuir a abstenção, fragilidade democrática que, com maturidade, deveríamos todos enfrentar e discutir, sem medos nem calculismos. Em nome da justiça, da verdade e do respeito pelo princípio de que ‘um cidadão é um voto’.

Como cidadão que acredita na democracia, defendo que Estado e Sociedade devem cooperar, pois ambos são meios: só a pessoa humana é fim! Há perversão da política quando esta hierarquia é invertida. E esse é, sempre, o foco principal do meu olhar: os meios permanecerem meios para que o fim seja, realmente, desenvolvido. Porque o verdadeiro progresso não é a mudança vertiginosamente das leis para lugar nenhum, mas o desenvolvimento de ‘todas as pessoas e da pessoa toda’ (Papa Paulo VI, Populorum Progressio, 14).

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