Pedro Vaz Patto comenta níveis históricos da abstenção, nas Europeias 2019, em entrevista que aborda temas como a Economia proposta pelo Papa, a violência doméstica ou o tratamento dos media a temas como a exportação de armas para zonas de conflito
Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Fotos: Cristina Nascimento (Renascença)
No rescaldo das europeias, como é que leu o resultado destas eleições, nomeadamente da abstenção que bateu um recorde em Portugal, pelo menos em termos percentuais?
O fenómeno da abstenção verifica-se também noutras eleições, mas de uma maneira particular nas europeias. Há, de facto, uma distância, um divórcio entre o cidadão comum e as instituições europeias. Se calhar os candidatos, e os políticos em geral, têm alguma responsabilidade, na medida em que desviam um pouco as atenções na campanha eleitoral para temas que não são especificamente europeus, e não exercem um papel que é importante, que é o de esclarecer as pessoas sobre o impacto que têm as decisões tomadas em Bruxelas, no Parlamento Europeu, na vida quotidiana. Porque isso é real, estamos numa economia aberta, num espaço de livre circulação, e há uma série de instrumentos de regulação da economia, e de outros âmbitos, que passam inevitavelmente pela União Europeia. E tem de ser mesmo assim, sob pena de a globalização ser desregulada. Uma forma de regular a globalização, a um primeiro nível, é ao nível europeu, daí a importância destas normas, que dependem da aprovação a este nível.
Já no início do ano, na mensagem para o Dia Mundial da Paz, a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) tinha alertado para o perigo deste desinteresse.
Sim. Mas, mais do que a questão da abstenção, ou para além da questão da abstenção, poderemos refletir, a propósito destas eleições, sobre o que muitos têm definido com a crise mais grave da União Europeia, que é a crise de confiança no projeto de unidade europeia. Foi contra isso que pretendeu reagir a Comissão Nacional Justiça e Paz, e que pretenderam reagir os bispos europeus, que estão reunidos num organismo que se chama COMECE, e que se calhar nem todas as pessoas conhecem, mas que vai acompanhando, na perspetiva da Igreja, as políticas da União Europeia.
Esta crise de confiança manifesta-se de várias formas, desde logo a questão do Brexit. Durante muito tempo a União Europeia foi atraindo cada vez maior número de países, e cada vez mais nos aproximámos mais de uma situação em que as fronteiras da Europa coincidem com as da União Europeia, até que temos um país importante que agora quer sair.
Para além disso, também há uma série de forças políticas que vão ganhando cada vez mais expressão, não em Portugal, mas noutros países, e que se opõem ao projeto da União Europeia. É preciso pensar como contrariar isto. Foi esse o objetivo da CNJP.
Penso que há que criar nas pessoas um sentimento de pertença a uma comunidade europeia. O sentimento nacional continua a existir, e o projeto europeu não deve ser visto como oposto a este sentimento nacional, mas deve ser alargado a um âmbito mais vasto. E para isso é preciso ter esta consciência de que somos uma comunidade europeia, temos valores e uma história comum, e é importante pôr isto em relevo.
Aquilo que acontece noutros países europeus ainda não é sentido pelas pessoas como próprio, seja no sentido positivo, seja negativo. Mas, recentemente, com o incêndio na catedral de Notre-Dame (Paris) – um monumento que, mais do que qualquer outro, é um símbolo de uma cultura europeia comum, que também tem a ver com as raízes cristãs -, de alguma maneira todos nos sentimos um pouco atingidos, de uma forma simbólica, mas que é significativa.
A abstenção revela falta de interesse, ou desilusão com a classe política? O que é que pode justificar a falta de mobilização das pessoas?
A nível europeu até houve um aumento da participação, e houve várias instituições que se mobilizaram no sentido de apelar a essa participação. Se virmos esta questão numa perspetiva histórica, vemos que a história da Europa é feita de divisões, e o projeto europeu, que deu passos importantes nestes 50 anos, não se constrói assim de um dia para o outro, nesta perspetiva de um sentimento comum.
Também há – e isso nota-se de uma forma particular em Portugal, mas não só em Portugal -, que muitas vezes os governos têm uma perspetiva um pouco estreita da defesa dos interesses nacionais. Claro que a sua missão é defender os interesses nacionais, mas o projeto europeu tem de ser visto numa perspetiva do bem comum europeu, não só do bem nacional.
O princípio do bem comum é um dos temas da Carta Pastoral dos bispos portugueses ‘Um Olhar sobre Portugal e a Europa à Luz da Doutrina Social da Igreja”. Esta perspetiva do bem comum europeu leva a superar a visão estreita, de curto prazo, imediata, do interesse nacional.
Às vezes os políticos portugueses são vistos – o juízo sobre a sua atuação – na medida em que obtêm mais fundos… é sua missão fazê-lo, mas temos de ver que a coesão da União Europeia não é só aquela que beneficia Portugal, é também a que beneficia eventualmente outros países até mais pobres, agora com o alargamento aos países de leste. Portanto, há que alargar um pouco esta visão, porque não se constrói esta coesão europeia, e o sentimento de pertença a uma comunidade, com esta perspetiva de cada um puxar a brasa à sua sardinha, que vale para Portugal e vale para os países ricos, que muitas vezes são reticentes em relação ao esforço de solidariedade que, necessariamente, exige a superação de diferenças.
Um dos aspetos que quisemos pôr em relevo na nota da Comissão Nacional Justiça e Paz, foi em relação ao reforço da política de desenvolvimento regional, porque há uma diferença muito grande entre regiões mais pobres e mais ricas na União Europeia. Durante um tempo foi-se atenuando esta diferença, mas atualmente já não é tanto assim.
Falou há pouco da intervenção da COMECE, o organismo que reúne os bispos das Conferências Episcopais dos países que integram a União Europeia. Em Portugal várias instituições e organismos ligados à Igreja alertaram para a importância da participação nas eleições. Foi importante tem tomado posição?
Acho que sim, porque este sentido de participação na vida comunitária começa por aí. Não votar por indiferença não é conforme à exigência cristã de serviço ao próximo, que não é só o serviço àquela pessoa que está ao meu lado, é à comunidade em geral, e o voto deve ser visto nesta perspetiva, como um contributo para o bem comum, o bem da comunidade. Foram várias as instituições que se pronunciaram, não só apelando ao voto, mas também pondo em relevo alguns aspetos que estão na agenda do Parlamento, para as pessoas terem atenção aos programas eleitorais, que eventualmente nem falavam dessas questões. Como o JRS, com a questão dos refugiados. A Comissão Nacional Justiça e Paz levantou questões relativas à exportação de armas por parte de países europeus, o desperdício alimentar, a questão das empresas multinacionais e o respeito pelos direitos humanos nas empresas que têm a sua sede da União Europeia. Portanto, estas instituições quiseram pôr em relevo alguns aspetos numa perspetiva de apelo, não só aos candidatos, mas também aos deputados que agora foram eleitos. Portanto, estes apelos não perderam atualidade, pelo contrário, agora é importante manter esta atenção em relação ao trabalho dos deputados que foram eleitos.
Esse é também trabalho para os jornalistas. Nesta semana em que a Igreja assinala o Dia Mundial das Comunicações Sociais. A forma como os media acompanharam a campanha eleitoral, e estes temas, pode ter contribuído para a abstenção? Há alguma coisa a mudar no olhar da comunicação sobre a Europa, sobre a participação política, para que isto não seja um ‘reality show’, mas um debate esclarecedor?
Pois, estas tomadas de posição, estes documentos, chamaram a atenção para questões que, de facto, passaram um pouco despercebidas à comunicação social em geral. Não me refiro especialmente à comunicação da Igreja, porque em relação a essa não tenho razão de queixa, foi a única que deu relevo a estas tomadas de posição. Mas nos restantes media não vi grande repercussão, tirando a questão da Carta Pastoral dos bispos, que talvez tenha tido algum eco, mesmo assim parece-me que não suficiente, não com a atenção que merecia. Não digo isto porque tenha interesse em que a Comissão Nacional Justiça e Paz, ou outras instituições, sejam faladas pela comunicação em geral, mas pelos temas que são abordados. De facto, estas questões que a CNJP pôs em relevo, como a exportação de armas para zonas de conflito bélico por parte países europeus, apesar de a União Europeia já ter tomado posição no sentido de restringir essa exportação para onde estas armas podem ser usadas em situações de conflito, é o que se está a verificar em relação à exportação para a Arábia Saudita, que tem tido grande oposição da parte de instituições da Igreja, e não só, em Itália, de onde partem estas armas…
O Papa Francisco tem sido muito crítico…
Sim, o Papa tem dito isso, muito claramente. É um tema que mereceria mais atenção.
Até porque alimentar conflitos e guerras exportando armas é alimentar outros problemas que atingem a Europa, como as migrações…
Sim, como os refugiados. Não digo que a exportação de armas seja a única razão para estes conflitos, e temos de distinguir a exportação que é clandestina, e que os estados não controlam. Mas há outra que é de direta responsabilidade dos estados, como é a que referi em relação à Arábia Saudita.
Mas, isto vinha a propósito do papel da comunicação social. Acho que é importante neste sentido de pôr em relevo algumas questões que passam um pouco despercebidas, não por não terem importância, mas porque se calhar não são da atualidade, do momento, do que suscita a atenção das pessoas hoje e amanhã, mas depois de amanhã já não. Já que vamos assinalar o Dia Mundial da Comunicação Social, acho que é bom sublinhar isto.
A Comissão Nacional Justiça e Paz tem tomando posição pública sobre os mais variados temas, como as migrações, as assimetrias salariais entre homens e mulheres, e também a questão da violência doméstica, que continua a marcar a atualidade. É um problema que exige a tomada de novas medidas?
Tendo o conhecimento da legislação a respeito da violência doméstica, penso que neste aspeto, como noutros, não é tanto a falta de legislação que está na raiz do problema. Nem tudo depende de uma mudança de legislação…
A ministra da Justiça admitiu esta semana alargar o conceito jurídico de tortura aos crimes de violência doméstica, como já acontece noutros países…
O quadro legislativo já prevê a possibilidade de punição destes crimes de uma forma severa. Acho que temos de ir mais fundo. A raiz deste crime, de uma forma particular, está na mentalidade, na cultura. E o que impressiona é que, ao contrário do que às vezes se pensa, que este é um fenómeno próprio de gerações mais velhas, menos instruídas e de zonas rurais, verificamos que não é assim. Há violência no namoro, entre jovens, o que é que leva a que isto aconteça? É uma conceção do relacionamento com o outro muito deturpada, de fazer do outro um instrumento, um objeto. Resolver passa por aí também, por alterar este quadro mental, esta cultura.
Apostar mais na educação?
É isso que é importante.
O Papa convocou para 2020, simbolicamente em Assis, um encontro com jovens economistas e empresários para se pensar um novo modelo económico mais amigo do Homem. Como é que vê esta iniciativa?
Vem na linha daquilo que o Papa tem dito sobre o atual sistema económico, que não coloca a pessoa humana no centro…
A ‘economia que mata’, é a expressão do Papa que todos fixaram.
Exatamente. Não sei qual é o programa do encontro, mas o simples facto de se ter escolhido a cidade de Assis, e esta referência a São Francisco, é significativa. Podemos pensar – o que é que o Santo da pobreza tem a ver com a economia, que habitualmente associamos à criação de riqueza? Bom, se formos ver há franciscanos que desde os inícios do desenvolvimento económico e comercial, na Idade Média na Europa, refletiram sobre economia, sobre o mercado…
Incluindo Santo António…
E não é assim uma perspetiva utópica ou fora da realidade de todos os dias. Nesse contexto em que se começavam a abrir os mercados, em que se desenvolvia o comércio, os franciscanos estiveram ligados às primeiras iniciativas que podemos associar ao mutualismo e ao microcrédito. Portanto, penso que a proposta é esta de encarar este novo modelo económico.
Como algumas pessoas que estão ligadas à preparação deste encontro já disseram, o sistema económico atual parte do princípio de que verdadeiramente aquilo que move as pessoas é o interesse próprio, é o egoísmo. Isto poderá ter alguma razão de ser, porque é esta a realidade, mas também pode ser limitador, porque da mesma forma que há pessoas que se guiam pelo seu interesse próprio, também sabemos que a pessoa se realiza quando se doa aos outros, quando se estabelecem relacionamentos de comunhão, solidários. Isso também faz parte da natureza humana. Portanto, o sistema económico deve abrir a possibilidade, e criar condições, para que também esta dimensão da natureza humana encontre expressão na vida económica.
Às vezes diz-se ‘amigos, amigos, negócios à parte’, como se o mundo da economia e dos negócios fosse separado daquilo que são as virtudes humanas, a vida cristã e a vida do Evangelho. Pôr termo a esta divisão penso que é um dos objetivos deste encontro, e o novo modelo económico passará um pouco por isto.
A iniciativa do Papa Francisco tem inspiração na ‘economia de comunhão’, que é proposta pelo movimento dos Focolares, com o qual está familiarizado. Do que é que falamos quando falamos de ‘economia de comunhão’?
Vem um pouco na linha do que eu dizia, se de facto a pessoa humana se realiza quando se dá aos outros, quando se criam estas relações de comunhão, a economia também deve ser assim, e a fundadora do movimento, Chiara Lubich, dizia ‘será utópico pensar assim?’. Não, porque se pensarmos que a pessoa humana é criada à imagem e semelhança de Deus, e Deus é doação e é amor, também se realiza no mundo económico desta forma. E a experiência da economia de comunhão – há várias empresas em Portugal e noutros países-, pretende testemunhar isso mesmo, que a vida de amor recíproco pode ser vivida no âmbito económico. E é isto que se procura propor, não só no âmbito do movimento, mas com outras pessoas, não necessariamente cristãs, mas que são sensíveis a esta ideia de comunhão aplicada à vida económica. Portanto, penso que a iniciativa do Papa vem um pouco nesta linha, embora este tipo de experiências, não são só as da economia de comunhão, noutros movimentos cristãos e noutros âmbitos, até fora do âmbito da Igreja, em que se procura pôr em relevo esta dimensão da pessoa aplicada à vida económica.
E pode haver outros contributos. O encontro vai reunir cerca 500 jovens economistas e empresários com menos de 35 anos de todo o mundo. Pode ser, de facto, ocasião para mudar alguma coisa?
Sim. E é significativo que sejam participantes com menos de 35 anos. Não tanto pela idade, às vezes não é a idade que é relevante, mas o facto de serem estudantes e jovens abertos a esta possibilidade de mudança, é possível mudar alguma coisa.