A construção do bem comum, responsabilidade da pessoa

Eu chego a ser Eu no Tu; ao chegar a ser Eu digo Tu – Toda a vida verdadeira é encontro. (M. Buber)

A pessoa é um ser de relação. A sua natureza mais profunda é relacional, sem os outros um ser humano não se torna pessoa. Uma criança, quando nasce, não aprende a falar e a pensar (duas capacidades que se desenvolvem em interdependência e que distinguem o ser humano dos outros animais) sem o estímulo exterior dos seus familiares e das outras crianças. No isolamento, sem relação, as suas capacidades não desabrocham e acabarão até por atrofiar.

Para além disso, a própria imagem que de si vai construindo a criança, é o espelho da imagem que lhe devolvem os outros. A criança começa, aliás, por se referir a si própria na 3ª pessoa: “A Inês quer papar”. Ela tem consciência de si a partir da consciência que dela têm os que a vêem e lhe restituem a sua própria identidade.

Podemos até considerar que a nossa natureza relacional provém da nossa origem primordial: o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Ora, Deus é, Ele próprio, relação. As três pessoas da Santíssima Trindade são a imagem perfeita da identidade na relação. Deus é (Yavé – “eu sou”) na interna relação das três pessoas nas quais a sua identidade dinâmica se desdobra.

Também nós, à semelhança de Deus, somos internamente complexos. No entanto, a nossa identidade não se forma somente no diálogo interior entre as várias partes de nós mesmos, mas é um sistema aberto, que se alimenta do exterior. Ser EU não implica ser fechado sobre mim, ser uma cápsula impermeável que é tão mais coerente quanto mais resistir às influências externas. Pelo contrário, sem a relação com o outro vou definhando, entro em curto-circuito e, de forma estéril, acabo por me tornar um disco riscado que repete incessantemente a mesma frase, sem se renovar, sem desenvolver o seu potencial.

Aristóteles, no séc. IV a.C., foi mais longe, afirmando que a pessoa se realiza na Cidade (polis), como expressão máxima da inter-relação que permite não só viver, como viver bem. A cidade existe como colectividade auto-suficiente a nível material e capaz de realizar o Homem em todas as suas potencialidades, alcançando a “vida boa”.

Para Aristóteles, aliás, esta dimensão colectiva que permite a plena realização humana não é o fruto da dimensão individual, não é um todo que resulta da soma das partes. Pelo contrário, é o seu pressuposto. A pessoa como indivíduo não existe (pois não chega a ser pessoa). As partes só existem (só fazem sentido) no todo. Como peças de um puzzle, como partes de um corpo. E por isso Aristóteles afirma que a cidade é, “por natureza, anterior ao indivíduo”.

«A natureza de uma coisa é o seu fim: aquilo que cada coisa se torna quanto atinge seu completo desenvolvimento (…). Essas considerações tornam evidente que a cidade é uma realidade natural e que o homem é, por natureza, um animal político (politikón zôon). E aquele que, por natureza e não por mero acidente, não faz parte de uma cidade é ou um ser degradado ou um ser superior ao homem.» (Aristóteles, Política, livro 1 cap.2)

Nesta linha de pensamento, a sociedade moderna tem vindo a realizar plenamente a natureza relacional do homem, ao alargar a polis à dimensão planetária. A rede de relações comerciais e socioculturais tornou-se uma complexa tela de fios entrelaçados em redor do globo. Desde os cereais que como de manhã, às calças que visto ou a cada peça do meu telemóvel, tudo o que uso no meu quotidiano tem uma origem global que me ultrapassa, tornando-me dependente de todos os homens para a minha própria subsistência. Culturalmente, também, as influências que contribuíram para a minha forma de pensar e olhar o mundo estendem-se de forma impressionante ao longo de séculos e de milhares de quilómetros.

Por outro lado, porém, o mundo moderno tem vindo a idealizar como modelo de “vida boa” a autonomia e a realização pessoal. Eu sou tanto mais feliz quanto mais puder fazer o que quero e quando quero, quanto menos dependente dos outros e mais “livre” for – no sentido redutor de não ter de prestar contas a ninguém.

Ora, este modelo de pessoa, que está em relação com todos os outros (através da globalização material e cultural), mas que quer daí trazer só benefícios e nenhuma contra-partida em responsabilidade global, começa a dar sinais de implosão.

Os homens e mulheres de hoje, cada vez mais citadinos mas mais solitários, agarram-se com unhas e dentes à sua autonomia evitando relações e compromissos que lhes tolham a independência, mas simultaneamente têm de recorrer a psicólogos e fármacos para resolver problemas que as sociedade anteriores à nossa apresentavam em muito menor grau. Problemas de solidão, de falta de diálogo, de frustrações profundas, de uma insatisfação permanente.

O dia-a-dia da maior parte das pessoas é uma sucessão de tarefas individuais, no emprego ou na família (famílias estas, também cada vez mais reduzidas e mais fechadas sobre si mesmas), para além das quais procuram pequenos momentos de satisfação pessoal através da ida ao ginásio, da aula de yoga – actividades necessárias para a “sanidade mental”. E o tempo para estar com os outros é sempre reduzido, e a participação cívica a nível associativo torna-se a última prioridade.

O Homem, cuja natureza necessita da relação com os outros, pretende crescer actualmente sem que essa relação o afecte, julga poder desenvolver a sua identidade na escuta somente de si mesmo e não dos outros e da colectividade. E assim, como uma planta que precisa de sol e se encontra a crescer à sombra, vai mirrando, definhando gradualmente.

O Bem Comum é a construção da polis de Aristóteles, é a realização da pessoa no todo que lhe dá sentido.

A sociedade de hoje espera talvez que uma “mão invisível” construa o puzzle, a partir de peças que, convictamente autónomas e independentes, pretendem antes de mais realizar-se individualmente. Torna-se provavelmente um objectivo irrealizável à partida: se cada um considera ter deveres só para consigo mesmo, e ter inúmeros direitos perante a colectividade, não é possível construir a cidade.

Joana Rigato, Vice-presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz

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