A Concordata aproxima o estatuto das religiões em Portugal

Vera Jardim, advogado, deputado e co-autor da Lei da Liberdade Religiosa de 2001, fala com a Agência ECCLESIA a respeito da nova Concordata e do seu lugar no enquadramento jurídico das confissões religiosas em Portugal Agência ECCLESIA – Porquê uma Concordata quando existe já a Lei de Liberdade Religiosa? Este processo poderia ter sido feito de outra maneira? Vera Jardim – Eu pessoalmente penso que poderia ter sido feito de maneira diferente, aliás, vários dignatários da Igreja Católica defenderam a mesma posição: poder-se-ia ter encarado um acordo entre a Santa Sé e a Igreja Católica para regular certos aspectos específicos da mesma, visto que a Lei de Liberdade Religiosa é uma lei recente, moderna, que cobre os aspectos que interessam às diversas religiões e a própria Lei prevê que as confissões religiosas possam celebrar acordos com o Estado português. É evidente que a Igreja Católica teria interesse em celebrar um acordo entre a Santa Sé e o Estado português para regular uma série de matérias importantes para os católicos e também para a República Portuguesa. AE – Quais são essas matérias? VJ – São matérias que dizem respeito à especificidade da Igreja Católica, por um lado, e ao peso que ela tem no país, por outro. Dou-lhe o exemplo dos feriados religiosos. Está previsto na Lei de Liberdade Religiosa que haverá determinados tipos de tolerância que deve haver nas empresas, no Estado, etc., que permitam aos crentes das várias confissões praticar a sua religião, porque, como é sabido, em muitas religiões o dia de prática religiosa por excelência não é o Domingo. Dado o peso que tem em Portugal a religião católica, a Igreja Católica teria interesse em regular por acordo com o Estado português os chamados feriados católicos, que são em muitos casos também feriados cristãos. Outro exemplo é o do património da Igreja Católica em Portugal, que é importante e muitas vezes se confunde com o património histórico do próprio Estado: basta olhar para as igrejas, para os seus tesouros, peças que estão em museus, que sendo pertença da Igreja Católica, nuns casos, e noutros do Estado, teria que ser regulado o seu uso. Um outro caso é o do casamento. A Igreja Católica, dada a especificidade da sua doutrina sobre a indissolubilidade do casamento, e dado o peso que tem na sociedade portuguesa, teria interesse, e o Estado também, em regular os efeitos do casamento católico na ordem jurídica portuguesa, como sempre esteve regulado na antiga Concordata e nas alterações imediatamente posteriores ao 25 de Abril no que diz respeito à possibilidade do divórcio na ordem jurídica civil, mas que não afecta a ordem canónica. Estes são três exemplos em que a Igreja Católica teria interesse em regular este conjunto de questões, e o Estado também o tem, porque são questões que pela sua importância merecem um tratamento especial. AE –Era necessária, então, a revisão concordatária? VJ – Em relação à generalidade das questões que vêm reguladas na Con-cordata, como o reconhecimento da Igreja como entidade com personalidade jurídica, o ensino religioso, a liberdade de prática de culto, e a sua protecção pelo Estado, o estatutos dos sacerdotes, tudo isso está regulado na Lei de Liberdade Religiosa em termos em que caberia perfeitamente que a Igreja Católica também por essa lei se regulasse. Entendeu-se, no entanto, que deveria ser feita uma Concordata; eu acho que não é a melhor solução, mas não tenho propriamente uma posição de princípio contra a Concordata. Acho que teria sido melhor haver uma lei base aplicada a todas as Igrejas e depois a Igreja Católica celebrar um acordo com o Estado português para regular certas matérias. Eu percebo que a Igreja Católica, dada a sua importância e implantação no país, como noutros países (Espanha, Itália, Alemanha, etc.) tenha interesse em regular as suas relações com os Estados através de um instrumento internacional, porque assim mantém uma estabilidade diferente das leis internas do país: as leis internas do país são alteráveis, o Parlamento pode mudar a lei; já um tratado internacional é um instrumento com mais estabilidade, normalmente os Estados não denunciam tratados internacionais, a não ser em circunstâncias muito especiais. Acho que aí a Igreja Católica tem interesse e penso que o Estado teria também interesse em conceder à Igreja um estatuto especial. Isso não afecta o princípio da igualdade, mas vai no sentido de celebrar um acordo com a Santa Sé como é o caso da Concordata. A Concordata é um acordo com a Santa Sé, que tem esse nome, é celebrado, digamos, ao abrigo também da ordem canónica da Igreja. AE – O que espera do novo texto da concordata? VJ – Ultimamente a Igreja Católica tem celebrado Concordatas com alguns países e acordos com outros. Os países da nossa tradição e até mais chegados à nossa cultura, como é o caso da Espanha e da Itália, não têm Concordatas com a Igreja, neste momento, têm acordos internacionais com a Santa Sé. Eu preferia que assim tivesse sido em Portugal, mas o Governo e a Igreja Católica entenderam que era ajustado celebrar uma Concordata e, naturalmente, a Concor-data que tínhamos era de 1940, que estava ultrapassada, como é óbvio. Os tempos são bem diferentes, o antigo Estado Novo, a ditadura, tinha perante estes problemas uma perspectiva diferente da que há hoje num Estado laico e com separação entre a Igreja e o Estado, o que não significa que a Igreja não coopere com o Estado e o Estado não coopere com a Igreja – como deve cooperar com a generalidade das religiões que reconhece, para que possam desempenhar as suas funções em inteira liberdade –, salvaguardadas, naturalmente, as leis do país, pois acho que é do interesse do Estado que não haja problemas com as várias confissões religiosas. Infelizmente, nós vemos no mundo de hoje que a religião, em muitos casos numa interpretação fundamentalista, cria climas, ambiente, movimentos e acções totalmente condenáveis. Nós em Portugal não temos uma questão religiosa, temos um relacionamento do Estado com a generalidade das confissões que é positivo, mas é importante que as religiões tenham o seu estatuto jurídico, de liberdade, um estatuto constitucional de separação entre as religiões e o Estado, mas também de cooperação mútua entre o Estado e as diversas confissões. A Concordata também traduz isso, um princípio de separação entre a Igreja Católica e o Estado, reconhecimento da identidade própria da Igreja, não só da Santa Sé, como da entidade máxima da Igreja portuguesa, que é a Conferência Episcopal Portuguesa, e traduz o princípio da cooperação e o da liberdade da Igreja em se organizar, de lançar aquilo que entende – seminários, obras, escolas, movimentos sociais, presença cultural – que é um factor naturalmente importante na sociedade portuguesa. AE – Como classifica a nova Con-cordata? VJ – A Concordata, a meu ver, é um documento equilibrado, que se aproxima em muitos casos, dos princípios da Lei de Liberdade Religiosa, aproxima-se e respeita-os, tendo o princípio de cooperação entre a Igreja e o Estado, o reconhecimento da Igreja Católica e da sua identidade, a obrigação de o Estado facilitar o exercício da fé, da plena liberdade religiosa, não só dos crentes como da Igreja no seu todo. Está também presente o estatuto dos eclesiásticos, que muda para bastante melhor porque entre os privilégios que a Igreja tinha até agora – e até há pouco tempo unicamente, visto que as outras confissões não o tinham -, estava o facto de os eclesiásticos estarem libertados do pagamento de imposto e isso acaba, no sentido da igualdade entre a igreja Católica e as outras confissões religiosas. A nova Concordata reconhece o direito da Igreja ao ensino livre, reconhece também o direito a ensinar a Religião e Moral Católica nas escolas públicas, sempre que os alunos o queiram, cumprindo a Lei do Estado português. Isso já sucede em relação às outras confissões. Portanto, há aqui uma aproximação entre o estatuto da Igreja Católica e o das outras religiões. AE – Apesar dessa aproximação, estamos perante a salvaguarda de privilégios para a Igreja Católica em Portugal? VJ – Aproximação não é exactamente igualdade, na medida em que há determinados aspectos da Igreja Católica que assumem uma importância muito grande em Portugal. Nós não podemos pensar, por exemplo, que num país com a nossa tradição, na Europa, nós fôssemos agora dizer que o Domingo não era um dia de descanso, isso faz parte da tradição da Igreja, mas também já faz parte da tradição europeia. Os feriados são um caso especial: dado que a grande maioria do povo português se declara de filiação católica, o facto de estarem fixados na Concordata os feriados que devem ser observados, e que são dias festivos para a Igreja Católica, não viola o princípio da separação. Naturalmente que o Estado não poderia ter como feriados todos os dias festivos de todas as confissões, toda a gente compreende que não seria possível. Não afecta o princípio da igualdade que haja normas especiais para os feriados católicos e para os outros haver um princípio de tolerância, um princípio básico do direito religioso: devemos respeitar as convicções de cada um desde que elas não impliquem com as nossas. Este problema tem sido muito discutido na Europa, como é sabido, a propósito do problema do véu em França, e o princípio da tolerância deve reger a presença das religiões numa sociedade moderna que é uma sociedade pluralista, democrática e onde se confrontam as mais diversas confissões religiosas. AE – Com os dois instrumentos jurídicos de que falámos (Lei de Liberdade Religiosa e Concordata) resolvem-se os problemas de enquadramento jurídico das confissões religiosas em Portugal? VJ – Eu penso que sim. Aliás, a Lei da Liberdade Religiosa tem sido uma lei muito comentada e debatida no estrangeiro, em vários países, como um modelo a seguir. Essa é uma lei que eu acho muito positiva, porque cobre todos os aspectos da religião, não só os aspectos que dizem respeito aos indivíduos, mas os aspectos colectivos do exercício da religião das várias confissões religiosas e penso que, com a Lei da Liberdade Religiosa e com a Con-cordata, nós ficamos com um estatuto jurídico das religiões muito adequado, muito moderno e que contribui decisivamente para que, na democracia portuguesa, o pluralismo religioso e a tolerância perante os outros tenha um apoio jurídico que é, aliás, um apoio constitucional. A Constituição Portuguesa já enumera o princípio da separação, da liberdade de cada um de ter ou não religião e de praticar a sua religião, mas era importante que determinados aspectos do ensino, da prática religiosa, do casamento, do património, etc., fossem regulados, quer para a Igreja Católica, quer para as outras religiões. A partir da Concordata, modernizada, própria de um Estado democrático, ficamos com um bom Direito das religiões.

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