A celebração do Sacramento do Amor

Desafios do Papa para renovar e de aprofundar a relação entre o mistério da fé, a acção litúrgica e o culto espiritual A exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis, assinada por Bento XVI no dia 22 de Fevereiro de 2007 e apresentada publicamente no dia 13 de Março, vem confirmar e aprofundar toda a reforma litúrgica operada pelo II Concílio do Vaticano. O mesmo documento pontifício continua a última série dos grandes documentos sobre a Eucaristia de João Paulo II: Ecclesia de Eucharistia e Mane Nobiscum Domine. O presente texto sobre a Eucaristia, fonte e vértice da vida e da missão da Igreja, divide-se em três partes: 1) a Eucaristia, mistério para se acreditar; 2) a Eucaristia, acção para se celebrar; 3) a Eucaristia, missão para se viver. Deste modo, evidencia-se claramente a unidade da fé professada (mistério), da celebração litúrgica (acção) e do novo culto (vida) inaugurado pelo mistério pascal de Cristo. Esta articulação é o desenvolvimento do antigo axioma litúrgico lex orandi – lex credendi (a lei da oração estabelece a lei da fé). Ao binómio original acrescentou-se a lex vivendi. Na verdade, já o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica havia seguido o mesmo percurso em quatro dimensões: lex credendi, lex celebrandi, lex vivendi, lex orandi. Ao que respeita à liturgia ou à celebração da Eucaristia (2ª parte), o Papa destaca o primado da acção litúrgica. Desde logo, realça o valor teológico e litúrgico da beleza na liturgia: “na liturgia, brilha o mistério pascal, pelo qual o próprio Cristo nos atrai a Si e chama à comunhão” (n. 35). Todavia, esta beleza não é uma simples estética e harmonia de ritos e formas, mas trata-se da beleza do próprio mistério pascal de Cristo que se celebra. A celebração da Eucaristia é apresentada, com efeito, na sua mais profunda sacramentalidade, como acção de Cristo e da Igreja. A seguir, o Papa reflecte sobre a arte da mesma celebração feita com a simplicidade dos gestos e com a sobriedade dos sinais, na qual o canto litúrgico ocupa um lugar de destaque. Por tal motivo, renova-se o pedido, onde for possível, de valorizar o canto gregoriano, tão importante na tradição da liturgia romana. Quanto à estrutura do programa celebrativo, recorda-se a unidade intrínseca da acção litúrgica, sublinhando especialmente: a liturgia da palavra, a homilia, a apresentação da oferendas, a Oração Eucarística, a saudação da paz, a distribuição e recepção da Eucaristia e a despedida. Observe-se, no entanto, a centralidade dada à Oração Eucarística, “ponto central e culminante de toda a celebração” (IGMR 78). Interessante é a proposta da recolocação do gesto da paz. Inspirado no sermão da montanha de Jesus (Mt 5,23s) e à semelhança do rito Ambrosiano, o Santo Padre propõe que “a saudação da paz seja colocada noutro momento, por exemplo antes da apresentação das oferendas no altar” (nota 150). Ao comentar a despedida da Eucaristia “Ite missa est”, Bento XVI estabelece uma relação entre o mistério celebrado e a missão cristã no mundo. Outro tema-chave da exortação apostólica é a participação activa na celebração. A participação plena, consciente e activa é um grande princípio teológico-litúrgico proposto pela Sacrosantum Concilium (SC): “É desejo ardente na mãe Igreja que todos os fiéis cheguem àquela plena, conscientte e activa participação nas celebrações litúrgicas que a própria natureza da Liturgia exige e que é, por força do Baptismo, um direito e um dever do povo cristão” (SC 14). Segundo a doutrina conciliar, toda a Igreja é sujeito da acção ritual. De facto, na celebração litúrgica realiza-se a principal manifestação da Igreja. A participação activa não consiste só na actividade externa, mas numa participação interior e espiritual, viva e frutuosa no mistério de Cristo. A participação litúrgica é parte integrante e constitutiva da mesma acção litúrgica. Não é qualquer coisa de extrínseco que se acrescenta accessoriamente à santificação e ao culto, mas é uma realidade santificadora e cultual. Outra questão, que os meios de comunicação exploraram muito, diz respeito ao uso do latim. Para as grandes celebrações internacionais, em ordem a exprimir melhor a unidade e a universalidade da Igreja, o Papa repropôs: “exceptuando as leituras, a homilia e a oração dos fiéis, é bom que tais celebrações sejam em língua latina; sejam igualmente recitadas em latim as orações mais conhecidas da tradição da Igreja e, eventualmente, entoadas algumas partes em canto grego-riano” (n. 62; cf. SC 36 e 54). A fecundidade e a amplitude deste princípio, timidamente enunciado no II Concílio do Vaticano, estava sob o olhar de todos. Todavia, Paulo VI, parafraseando S. Agostinho defendeu o uso da língua vulgar e afirmou: “É preferível que nos critiquem os doutos do que a liturgia continuar a ser ininteligível para o povo”. Daqui, a possibilidade do uso da língua vulgar, apesar da manutenção da língua latina. Recorde-se, ainda que, durante o Concílio, o Patriarca Maximos IV teve a coragem de dizer que “todas as línguas são litúrgicas”. Tudo isto em vista do bem maior, isto é, a participação activa mediante a compreensão facilitada dos fiéis. A celebração da Eucaristia deve ser interiormente participada mediante uma boa mistagogia, que, segundo o texto, compreende três elementos: 1) a interpretação dos ritos à luz dos acontecimentos salvíficos; 2) a introdução no sentido dos sinais; 3) a significação dos ritos para a vida cristã. Bento XVI recorda de novo a adoração eucarística como prolongamento visível da mesma celebração da Eucaristia, a qual em si mesma, é o maior acto de adoração da Igreja. Enfim, esta exortação apela à coerência, isto é, o mistério em que se acredita é o mesmo que se celebra e este, por sua vez é aquele que deve ser vivido no quotidiano da vida cristã. O desafio continua a ser o mesmo de sempre, ou seja, o de renovar e de aprofundar a relação entre o mistério da fé, a acção litúrgica e o novo culto espiritual que deriva da Eucaristia enquanto sacramento do Amor. Pe. José Cordeiro, Reitor do Pontifício Colégio Português

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