«A actualidade da Cruz»

Homilia na Paixão do Senhor por D. José Policarpo

1. A actualidade da Cruz de Cristo significa a actualidade da redenção. Porque o Senhor ressuscitou, vencendo a morte, não podemos considerar a Cruz do Senhor como um facto ultrapassado. Ela tem a actualidade da redenção, de cada um de nós e de toda a humanidade e o acto redentor supõe sempre a morte e a ressurreição para uma vida nova.

Depois do pecado, o homem não poderia redimir-se só com as suas forças. Foi por isso que Ele, verdadeiro Homem, puro e santo, que reúne em Si toda a humanidade, “suportou as nossas enfermidades e tomou sobre Si as nossas dores” (Is. 53,4); “Caiu sobre Ele o castigo que nos salva” (Is. 53,6).

A redenção do homem pecador exige morrer para o pecado, isto é, deixar apagar na humildade toda a nossa vida natural, mesmo nos aspectos belos que ela tem e que são apenas sementes anunciadoras da verdadeira vida. Deixar-se morrer, para viver, é o dinamismo da redenção e isso tornou-se possível ao homem porque Ele nos substituiu nesse morrer para viver. A nossa redenção está agora a acontecer e nós precisamos tanto da morte de Cristo como da Sua ressurreição.

2. A Igreja confronta-se com a actualidade da Cruz de Cristo na celebração de todos os sacramentos. Mas é, sobretudo, na Eucaristia, que a Igreja se confronta com esta actualidade da Cruz. O sacrifício que Cristo, Sumo Sacerdote da nova Aliança, oferece ao Pai em cada Eucaristia, é o sacrifício que redime o mundo, a oferta da Sua vida por todos nós. A Sua ressurreição não anulou a oferta da Sua Vida; revelou-lhe a dimensão perene. Na Eucaristia a Sua vitória sobre a morte exprime-se nos frutos do Seu sacrifício numa humanidade resgatada. A Igreja, na sua união a Cristo, torna-se povo sacerdotal, oferece com Cristo o sacrifício total. A Cruz floresce em frutos de vida eterna, revelando a fecundidade do sofrimento redentor. A ressurreição, de que nós já participamos, não anula o sofrimento e a morte; revela-lhe o sentido pleno. Nós temos um Sumo Sacerdote que penetrou os Céus, Jesus Filho de Deus (cf. Heb. 4,14), escutávamos na Carta aos Hebreus.

Na Eucaristia a Cruz preside sempre ao altar do sacrifício e a liturgia dá-lhe uma centralidade maior do que à própria reserva eucarística. Devemos procurar que, na colocação que damos à Cruz, ela nunca perca essa presidência do altar do sacrifício. Há uma fecundidade salvífica, actual, da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

3. Esta fecundidade actual da Cruz de Cristo é significada pelo Evangelista São João, num pormenor da Paixão: “Os soldados… ao chegarem a Jesus, vendo-O já morto, não lhe quebraram as pernas, mas um dos soldados trespassou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água” (Jo. 19,35). Os Padres da Igreja e a tradição cristã viram neste coração trespassado a fonte perene da qual, em todos os tempos, jorra a salvação. A água que há-de transformar os baptizados, unindo-os para sempre à morte e ressurreição de Cristo; o sangue que continua a redimir-nos, o Sangue de Cristo a que se une o sangue do sofrimento de todos os cristãos que foram capazes de o viver em união ao sofrimento de Cristo. É uma fonte que não secará, que continuará a purificar-nos dos nossos pecados e a dar-nos a semente da vida nova. Este facto do coração de Cristo trespassado gerou uma espiritualidade centrada neste Coração, fonte de vida e de graça. Praticamente hoje não há Igreja onde, ao lado da Cruz e do altar, não esteja presente este coração de Jesus, anúncio da perenidade com que nos amou na Sua Cruz.

4. Aos pés da Cruz, acompanhada das santas mulheres, estava Maria, Mãe de Jesus. Como Simão lhe tinha anunciado (cf. Lc. 2,35), aquela espada que trespassou o coração de seu Filho, trespassou também o seu coração, um Coração Imaculado como o de seu Filho, capaz de dar ao próprio sofrimento um único sentido: a fecundidade da redenção. Ao entregá-la como Mãe da Igreja, Jesus quer que haja um único coração redentor, o Seu e o de Sua Mãe.

Também do seu Coração Imaculado jorrarão rios de água viva. Ela abraça-nos com o seu amor maternal e nesse abraço, ensina-nos a contemplar, na sua actualidade, a Cruz de Cristo, sobre a qual a ressurreição faz brilhar a luz da vida eterna.

Maria é um caminho seguro para abraçarmos a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nos louvores que a Liturgia de hoje entoa à Cruz de Cristo, louvemos também o Coração Imaculado de Maria, trespassado pela mesma espada que fez jorrar desses corações, para todo o sempre, a graça da salvação.

D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa
Sé Patriarcal, 29 de Março de 2013 

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