Entrevista: D. Eurico Dias Nogueira, de Braga e do mundo (repetição)

No dia do seu 89.º aniversário (3 de março de 2012), a Agência ECCLESIA recordou o percurso episcopal do arcebispo hoje falecido, que passou por África e participou no Concílio Vaticano II.

Agência ECCLESIA (AE) – O que faz, concretamente, um bispo emérito? Dedica-se ao estudo e a algumas tarefas pastorais?

D. Eurico Dias Nogueira (EDN) – Um bispo emérito não tem um serviço próprio porque ficou dispensado do serviço que tinha, mas continua disponível para ajudar. Faço isso com frequência quando o arcebispo de Braga me solicita.

AE – No ponto de vista laboral, a Arquidiocese de Braga é muito eclética. Nunca teve dificuldade no diálogo? Entende-se com o pescador e também com o industrial?

EDN – Nunca tive dificuldades. Nesta região, os homens do mar são muito religiosos, mais do que «lá para baixo». Aqui, as paróquias junto do mar têm muita atividade e a paróquia de Caxinas é uma delas.

AE – Homens que têm sempre o perigo junto deles porque com o mar não se brinca.

EDN – Nessa paróquia tem morrido muita gente no mar.

 

AE – O papel do pastor é ajudar e reconfortar essas famílias que viram desaparecer no mar os mais próximos?

EDN – Escutar é fundamental, depois dou-lhes um conselho amigo.

 

AE – Para além da experiência da escuta e de conselheiro, D. Eurico Dias Nogueira tem uma pena fácil e escorreita, visto que tem publicado muitos livros.

EDN – Já publiquei vários. Para além disso, também trabalho no Tribunal Eclesiástico – como juiz de segunda instância – porque Braga, como é metrópole, tem dois tribunais: um de primeira instância e outro de segunda. Ano sim e ano não, também tenho cursos de pós-graduação para juristas e advogados.

 

AE – Um bispo emérito tem outra liberdade de espírito e outra disponibilidade?

EDN – Como não se tem tanta responsabilidade, a pessoa sente-se mais à vontade e tem outra disponibilidade para refletir.

 

AE – Sempre gostou de viajar?

EDN – Sempre. Viajei muito… Mesmo quando estava em Coimbra, como padre.

 

AE – Quando chega a uma cidade nova de um país, o que procura? A arte e a história ou as pessoas?

EDN – Quando chegava, ia visitar as comunidades dos portugueses. Aproveitada também para visitar locais emblemáticos

 

AE – Qual o sítio que o marcou dos vários pontos do globo onde esteve?

EDN – Roma é um ponto de referência porque vivi lá, três anos, quando estudava. Também estive várias vezes em Paris, com muito gosto… Londres nem tanto.

 

AE – Sente-se mais próximo da cultura francófona ou anglo-saxónica?

EDN – Francófona.

 

AE – Ainda é do tempo que o francês era um idioma mais generalizado?

EDN – No seminário, estudei francês e não me atrapalhava. Agora estuda-se inglês, mas no meu tempo não se estudava esta língua. Assim, nunca aprendi o inglês. Ainda tentei várias vezes, mas era diferente.

 

AE – Não aprendeu inglês, mas estudou o latim?

EDN – Latim e grego (risos)… Não falava o grego como o latim, mas traduzia-o com toda a facilidade.

 

AE – Com a ausência do inglês não se pode considerar poliglota?

EDN – Senti falta do inglês. Um dia, quando estava para sair de Angola e a Santa Sé queria que fosse para a África do Sul acompanhar os portugueses, disse: “Não vou porque não falo as duas línguas (africander e inglês)”. Se soubesse inglês talvez tivesse ido para a África do Sul. E gostava de ter ido…

 

AE – Quando esteve em África, mais concretamente em Vila Cabral algumas pessoas diziam que D. Eurico Dias Nogueira era «comunista».

EDN – Comunista? Ouvi dizer isso… (risos)

 

AE – Ouviu?

EDN – Sim, mas não sei onde se baseavam. Criticava algumas posições do governo e não dizer bem do governo era, automaticamente, «ser comunista». Era um exagero. São histórias sem fundamento…

 

AE – Todavia, as críticas ao governo tinham fundamento?

EDN – O governo podia ter encaminhado as terras de África para a independência de outra forma, tal como o fez no Brasil. Podíamos ter feito de Angola e Moçambique dois «brasis». Era um bem para Portugal e a maior parte dos portugueses continuavam lá. O governo não teve capacidade para isso.

 

AE – Por falta de visão estratégica?

EDN – Havia muitos interesses económicos e, esses interessados, não queriam a independência. Queriam manter aquela situação e o governo não teve coragem para se opor dizendo: “Não, o caminho é este”. Acredito que havia pessoas no governo que se aperceberam que as coisas não estavam bem encaminhadas.

 

AE – Inclusive, chegou a escrever cartas a membros do governo onde alertava para a situação?

EDN – Enviei…

 

AE – Mesmo para António de Oliveira Salazar?

EDN – Tive dois contactos com Salazar, mas para o ministro do Ultramar é que contactava muito.

 

AE – Adriano Moreira

EDN – Sim. E também alertei outros.

 

AE – Como estava no terreno conhecia a realidade como ninguém?

EDN – Uma vez acusaram-me… O ministro fez-me chegar a informação. Uma vez, numa ida a Roma, passei por Lisboa e pedi uma audiência ao ministro do Ultramar. Ele leu-me uma carta que tinha recebido de Moçambique, onde eu era atacado. Leu a carta, mas escondeu o nome do autor e local. Percebi logo que aquilo vinha de um capitão… Disse-lhe: “Essa carta «não tem pés nem cabeça»”.

 

AE – Para além da prática, visto que estava em África, também tinha a teoria porque fez uma tese sobre as missões católicas nas colónias.

EDN – Talvez, por isso, é que lá fui parar. Quando me mandaram (bispo e reitor do seminário) para Roma estudar disseram-me: “Não vem de Roma sem o doutoramento feito”. E continuaram: “Faça o melhor que puder, mas ao fim de três anos tem de vir”.

Como o doutoramento era sobre Direito Canónico, aconselham-me a ir à Concordata ver temas. O professor de Direito Concordatário, um espanhol, disse-me para fazer sobre o «Acordo Missionário» porque ninguém tinha olhado para ele. Era um documento original porque a Santa Sé nunca tinha assinado um documento assim…

 

AE – Foi a luz para tese de doutoramento?

EDN – Comecei a trabalhar nela e, em três anos, não pus os pés fora de Itália. Nunca vim a Portugal, mas tinha o trabalho feito e foi aceite como tese de doutoramento. Não foi brilhante porque foi feito muito à pressa.

 

AE – Os estudos ocuparam muito do seu tempo, mas sabe-se que fazia muitas caminhadas a pé e era um crítico da comida na instituição onde estava alojado.

EDN – No primeiro ano passei fome. Só nos davam uma refeição por dia… Íamos para as aulas quase em jejum. Fazíamos meia hora a pé até à Faculdade. Muitas vezes chegávamos ao colégio exaustos.

 

AE – Nunca pensou em desistir?

EDN – Não. De dezembro até outubro só tomávamos uma refeição por dia.

 

AE – Este foi o pior período da sua vida do ponto de vista da alimentação? Mesmo incluindo África?

EDN – Sim. Em África não tive dificuldades.

 

AE – Com o doutoramento feito nesta área, a nomeação para a Diocese de Lichinga (Moçambique) foi algo natural. Ainda se recorda da conversa com o núncio?

EDN – Sim. Chamou-me e disse-me: “O Papa quer que vá para bispo de Lichinga”. Nunca tinha ouvido falar naquele nome. Disse-lhe que «devia ser alguém de lá que conhecesse a realidade». Perante a minha relutância, disse-me que teria a mesma reação que eu, mas devia aceitar. E acrescentou: «O senhor estava marcado para ser bispo em Portugal, mas de Roma disseram que tinha de ir para Moçambique»

 

AE – E sabe a diocese para onde estava marcado em Portugal?

EDN – Não me chegou a dizer, mas creio que era para auxiliar de Lisboa. No entanto, não tenho a certeza.

 

AE – Eram dioceses que começavam com a mesma letra do alfabeto (L) mas com realidades distintas?

EDN – A Diocese de Lichinga estava criada há um ano, mas não se tinha encontrado bispo para lá. Por outro lado, disse-me o núncio: “Insistem que vá um bispo que saiba Direito porque nenhum dos bispos que está em Moçambique sabe Direito”. Acabei por ir… Sem grande vontade, mas fui.

 

AE – Não ficou em Portugal por alguma razão? Suponho que, na altura, estava a realizar um bom trabalho no Centro Académico de Democracia Cristã (CADC), em Coimbra?

EDN – Acho que em Portugal ninguém se opôs. Foi mais de Moçambique a puxarem para ir para lá. O núncio disse-me: “Compreendo a sua relutância, mas vá e faça o melhor que puder durante dois anos. Se ao fim de dois anos não se adaptou, comunique-me que nós chamamo-lo para cá”. Ao fim de dois anos perguntou-me e disse-lhe: “Vim contrariado, mas vejo que estou a ser útil aqui”.

 

AE – Caiu nas «boas graças» e até o nome ‘Eurico’ passou a ser frequente em Moçambique?

EDN – É verdade. Passou a haver muitos ‘Euricos’.

 

AE – Olha-se para si e nota-se nostalgia desse tempo?

EDN – (Com os olhos humedecidos). Um bocado…

 

AE – Na Conferência Episcopal Portuguesa esteve em várias comissões. São necessários estes grupos na dinâmica pastoral do país?

EDN – São grupos especializados. Estive na Comissão Episcopal das Migrações e Turismo e foi muito interessante porque visitei inúmeros países. Já visitei cerca de sete dezenas de países, mas muitos deles devido ao estar na referida comissão.

 

AE – A reorganização das dioceses em Portugal tem merecido alguma reflexão? Sei que defende uma nova divisão territorial…

EDN – Para já, criava uma, ou melhor, restaurava: Castelo Branco. Entendo que Castelo Branco devia ser diocese porque é a única sede de distrito que não é diocese. Depois ligava-se a Coimbra porque Coimbra quer ser arcebispado. Não tenho nada a opor, até porque Coimbra representa uma região diferente do Minho. Com as dioceses à volta (Viseu, Aveiro, Leiria, Guarda e Castelo Branco) fazia-se a metrópole de Coimbra.

Mas tem a oposição de Portalegre porque entende que ficaria muito pobre e com dificuldades económicas. Abrantes, Sardoal e Mação ficariam em Portalegre e iam buscar a Évora três ou quatro vigararias que estão próximas de Portalegre. A arquidiocese de Évora é enorme e estas vigararias não lhe faziam falta.

 

AE – O Patriarcado de Lisboa também é extenso?

EDN – Isso é outro caso. Nas capitais da Europa, a diocese é apenas a capital. Os arredores são outras dioceses. Via, no Oeste, outra diocese perfeitamente.

Depois temos também a questão do Porto, cidade importante, mas a diocese não é arcebispado porque depende de Braga. Havia duas hipóteses: Uma era fazer do Porto um arcebispado sem sufragâneas, onde o bispo seria arcebispo, mas não metropolita, ficando dependente, diretamente, da Santa Sé; outra era passar para arcebispado metropolita com a criação de uma diocese em Penafiel e outra para os lados de Gaia ou Santa Maria da Feira. Com as duas dioceses novas e Lamego poderia constituir-se arcebispado metropolita.

Quando extinguiram as dioceses de Pinhel, Miranda e Castelo Branco também queriam fazer o mesmo a Lamego, mas estes revoltaram-se porque era bem organizada e grande. Como «barafustaram», a Santa Sé deixou ficar e bem porque Lamego é uma diocese boa e com muitas vocações.

 

AE – Estas alterações que defende implicam a existência mais bispos. Todavia, as comunidades ficariam mais próximas e com outra identidade.

EDN – Tudo isto, depende do aval do bispo porque se este se opõe é difícil que as coisas avancem. Com a criação de novas dioceses não seriam necessários tantos auxiliares.

LFS

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Agência ECCLESIA

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