Porque a verdade da cruz é a verdade do mundo

Homilia na Paixão do Senhor de D. Manuel Clemente

«Disse-Lhe Pilatos: “Então, tu és rei?”. Jesus respondeu-lhe: “É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”. Disse-Lhe Pilatos: “Que é a verdade?”»

Irmãos e amigos, nesta hora que vivemos e celebramos, tais palavras entre Pilatos e Jesus, trazem-nos o fundamental do que nos explica aqui. Nelas podemos encontrar a razão de, dois milénios depois, a narração evangélica se manter tão viva e incisiva, traduzindo em tantas línguas do mundo o essencial do que o mundo há de saber.

Para Pilatos, a questão seria meramente política, senão policial, coisa de ordem pública e segurança romana. Um “rei” em Israel podia fazer concorrência a Roma, inadmissível concorrência. Para mais, a família de Herodes já era realeza local que bastasse e até onde o imperador permitisse, ou seja, pouco ou nada.

Pilatos podia já ter ouvido falar da esperança messiânica, e que, de tempos a tempos, apareciam candidatos ao título. Nada que Roma não pudesse dominar, mas sempre um incómodo a evitar. Por isso quis saber se Jesus se considerava “rei”.

O que decerto não esperava o governador romano era a resposta de Jesus, remetendo-lhe a pergunta confirmada: «É como dizes: sou rei». Até porque o esclarecimento continuava: «Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».

A substância do reino de Jesus é a verdade que encerra, não precisando doutra justificação, apologia ou ajuda. Vale por si, autêntica. A substância do império de Roma era alguma, sobretudo na ordem política, militar e jurídica. Mas sempre pelo sistema, menos pelos imperantes, ainda que arvorados em deuses. Verdade à parte, nenhum hesitaria em impor a sua vontade. E Pilatos era, na circunstância, o rosto fugaz dessa mesma imposição.

Não estamos aqui por sua causa, muito pelo contrário. Ou melhor, estamos pelo contraste entre uma pseudo-verdade exterior e imposta e a verdade límpida e autêntica com que Jesus respondia ali.

Esta sim, atrai-nos há séculos, como atrairá por outros tantos e enquanto o mundo for mundo. Cada um de nós confirma, precisamente ao estar aqui, a definição que Jesus dá do seu reino, tão incisiva e simples como isto: «Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».

Escutámo-la nós, entre tantas vozes e mais forte que elas todas. Força do reino de Cristo, força da convicção que induz. Não o trocaríamos por nada, como Ele não nos trocou por coisa alguma. E dessa coincidência de entregas brota e rebrilha a verdade de Jesus.

Quando Pilatos abreviou o diálogo, com aquele «Que é a verdade?», que displicentemente lhe saiu, manifestou o que era e ainda mais o que desistia de ser e de saber. Deixava assim de encontrar, pois quem não procura não encontra; e quem algo encontra, mas deixa de procurar, rapidamente perde o que encontrou.

Da parte de Jesus a resposta é total, assim sendo a definição de verdade: «Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz». Deduz-se que a verdade não é propriamente um objeto, mesmo que se possa objetivar aqui e ali, como que assinalando alguma consistência já. A nossa própria consistência, quando permitimos que a de Jesus nos fortaleça e transforme.

Jesus não mencionava uma verdade que lhe fosse estranha, mas em si próprio oferecia a verdade de tudo, na ligação que mantinha com Deus, connosco e com as coisas.

Creio ser por isso que os Evangelhos não abundam em definições essencialistas de Deus e da verdade divina. Surpreendem-nos, isso sim, com os reiterados convites de Jesus a que o sigamos, o olhemos bem, o escutemos melhor, o imitemos na prática. Integra-nos na sua vida, mais do que lhe define os contornos, que aliás se alargam sempre, mais e mais.

Aos primeiros discípulos não dirigiu grandes explicações, mas sim fortes convites: A dois que lhe perguntavam onde “morava” – maneira judaica de traduzir um “como te defines”, mais helénico – retorquiu pura e simplesmente: «Vinde e vereis!» (Jo 1, 38-39). A outros dois, que lançavam as redes ao mar, disse-lhes sem mais: «Vinde comigo e eu farei de vós pescadores de homens!» (Mt 4, 19). Estes e outros foram, aprenderam e ensinaram a verdade de Jesus, como a escutamos hoje.

Nem sempre encontrou igual correspondência. Ao jovem rico, que aliás manifestara algum interesse em alcançar a “vida eterna”, Jesus propôs: «Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu; depois, vem e segue-me». Mas a reação foi negativa: «Ao ouvir isto, o jovem retirou-se contristado, porque possuía muitos bens» (Mt 19, 21-22). Ficou-lhe a verdade por cumprir.

Caríssimos irmãos e irmãs: Já de seguida, ser-nos-á apresentada a cruz do Senhor, único sinal que a Igreja contempla neste dia, representação perfeita da sua própria verdade, enquanto vida entregue, por nós e para nós. E caminharemos para ela, incluindo-nos no imenso cortejo que pelo mundo fora se abeira da Paixão do Senhor.

Vede o contraste com a atitude de Pilatos: A Jesus, já maltratado, que lhe dava testemunho da verdade, respondeu daquele modo, afastado e desistente. Dois milénios depois, correspondemos nós com a nossa vinda aqui, pois naquela vida entregue reconhecemos a verdade de um Deus que nos procura, qual pastor que «tendo perdido uma ovelha, vai à procura dela até a encontrar» (cf. Lc 15, 4).

Encontrou-nos na cruz do mundo – deste nosso mundo tão dilacerado por agudíssimos conflitos, exteriores e interiores a todos e cada um – e nela mesma nos acompanhou e acompanha, nos salvou e salva.

É esta a verdade que Pilatos não quis aprender, mas nós sim. Sendo verdade vivida, teremos de a aprofundar constantemente na cruz continuada onde igualmente se oferece, nas existências pobres e sofridas de tantas pessoas em que Jesus nos espera.

Por isso, celebrar a Paixão é o pórtico indispensável da Páscoa, da Páscoa de todos os dias, em tempo verdadeiramente pascal e muito além do calendário litúrgico. A celebração da Paixão do Senhor espera-nos depois nas nossas casas, naqueles de quem nos aproximarmos ou nos procurem, em tudo o que precise de ser salvo pela verdade da Cruz, que tanto adoramos como transportamos, por nós e pelos outros.

A verdade da cruz é a verdade do mundo, que só nela se salva e resplandece.

D. Manuel Clemente
Sé do Porto, 29 de março de 2013

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