«Rendamo-nos de vez à humildade de Deus»

Homilia da Missa da Ceia do Senhor do bispo do Porto

Ouvimos na primeira leitura, tirada do livro do Êxodo, esta ordem de Deus ao seu povo, prestes a libertá-lo do cativeiro egípcio: «Procure cada qual um cordeiro por família […]. Recolherão o seu sangue, que será espalhado nos dois umbrais e na padieira da porta das casas em que o comerem. […] Quando o comerdes, tereis os rins cingidos, sandálias nos pés e cajado na mão. Comereis a toda a pressa: é a Páscoa do Senhor. Nessa mesma noite, passarei pela terra do Egito […]. Ao ver o sangue, passarei adiante, e não sereis atingidos pelo flagelo exterminador […]. Esse dia será para vós uma data memorável».

Caríssimos irmãos, aqui reunidos na Missa da Ceia do Senhor, inaugurando o tríduo pascal de 2013: Como acabei de referir, trata-se de 2013, o que nos transporta ao século XXI cristão, somado aos doze ou treze em que fora o tempo de Moisés e a primeira Páscoa referida… É caso para justamente nos interrogarmos sobre o porquê desta leitura, feita agora e no diferentíssimo contexto em que vivemos.

A resposta começa a ser dada pela nossa presença aqui. O texto lido e ouvido, fala-nos certamente da libertação do Egito. Mas a memória guardada pelos nossos antepassados do primeiro testamento, é base indispensável para a que ganhámos em Cristo, «Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo».

Indispensável, sim, requerendo meditação mais compassada. Retomemos os pontos essenciais: um povo submetido a opressão; Deus, que não o queria assim e suscitara em Moisés a cooperação indispensável para libertar os seus irmãos; um Egito que não os queria deixar partir; um cordeiro que se devia comer em família e cujo sangue assinalaria as suas casas, resguardando-os quando o Senhor passasse; e tudo com urgência e grande pressa, porque de partir se tratava.

Quando o Senhor passasse… Esta passagem definiu a Páscoa, antiga ou nova. Passagem de Deus, que tomará em Cristo a última expressão e figura – mas é sempre sua a Páscoa, e será nossa a libertação de quantos “Egitos” nos cativarem. E nem faltará o “sangue”, sinal da vida que nos protege.

Iniciemos então o tríduo sagrado com idêntica expectativa e igual premência, pois é de urgente libertação que se trata. Não cumprimos exteriormente um ritual, antes nos cumprimos nele, permitindo que as palavras e os gestos nesta Santa Missa repetidos nos impregnem profundamente o coração com um poder tão salvador como o que tirou o povo daquele cativeiro antigo.

Urgência, disse, porque a Páscoa não se atrasa, e muito menos o Senhor que passa e espera ver nas nossas casas, isto é, nas nossas vidas, o sinal visível de que nos dispomos realmente a partir.

Creio que partilhareis comigo a convicção de que a Páscoa do mundo – deste mundo nosso, tão carregado e sofrido como está em tantos, longe ou perto – demora ainda e demasiadamente demora, porque atrasamos a partida, aquela saída de muitos cativeiros onde por vezes parecemos acomodar-nos.

Não nos faltam repetidos “Moisés”, que da parte de Deus nos garantam os êxodos, as saídas possíveis. Não nos faltam séculos e séculos dos dois testamentos, a demonstrar que quem parte encontra caminho, na disposição mais firme para seguir em frente. E, no entanto, entre agora cada um de nós na casa do seu coração e veja se está pronto, realmente pronto e decidido, a sair de quanto o prende e espiritualmente limita. Não tanto pelas suas forças, mas primeiramente porque Deus o quer e inteiramente porque Deus o pode. Deus passa e nós partiremos com Ele.

No momento atual que vivemos e sofremos, por nós ou pelos outros, repetem-nos sucessivamente a pergunta sobre o que afinal fazemos enquanto Igreja e como respondemos à famigerada “crise”. Creio que a resposta só pode ser uma, como aliás é dada por tantas vidas de facto convertidas: há muita gente que, por se dispor realmente a sair de cativeiros vários e egoísmos múltiplos, confia mais em Deus do que em conjeturas sobre o que pode ou não pode, teme ou não teme, e avança, solidariamente avança, como “povo” avança, ainda que os desertos sejam longos e o horizonte apenas se entreveja.

Na Páscoa de 2013, nesta catedral e em todas as famílias e comunidades cristãs, nós somos e só podemos ser, um povo disposto a partir – não como emigrantes geográficos mas como gente convertida a um Deus que nos faz estar ainda mais aqui, em doação e serviço.

Como discípulos de Cristo, ouvimos o trecho de Paulo aos coríntios, no primeiro resumo da tradição eucarística: «Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti: o Senhor Jesus, na noite em que ia ser entregue, tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. […] Este cálice é a nova aliança no meu Sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de Mim”.

Isto dissera Jesus naquela última ceia em que resumira o significado de toda a sua vida entre nós e por nós entregue. Da sua Páscoa afinal, como também ouvimos, no Evangelho que se seguiu, começando assim: «Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim…”.

– Que sabemos nós então e enquanto cristãos sabemos e professamos? Sabemos que, em Jesus, temos o Cordeiro que nos alimenta e salva, como alimento para o caminho e sinal protetor; sabemos que nele é o próprio Deus que passa e que, com ele sempre, também nós passamos deste mundo para o Pai, numa filiação finalmente cumprida, que nos realiza inteiramente a nós e igualmente liberta o mundo, fazendo respirar a criação inteira.

Também isto nos disse Paulo, noutra das suas cartas, divisando o horizonte imenso duma Páscoa cumprida, em nós e no mundo, ou, por nós, no mundo: «Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adotivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai! […] Até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 15.19).

Em tudo é sempre e só de Páscoa que se trata, passando com Cristo para o Pai e reencontrando no coração de Deus a libertação definitiva de quanto nos retém e escraviza, em corações fechados por egoísmos e medos que sufocam tristemente o mundo.

Não ficamos por enunciados gerais ou ideias abstratas. O Evangelho não podia ser mais concreto e impressivo, no gesto de Cristo, Filho de Deus na terra: «Levantou-se, da mesa, tirou o manto e tomou uma toalha, que pôs à cintura. Depois, deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos».

Absolutamente assim e nada menos do que isto, caríssimos irmãos em tríduo. Iniciando a celebração pascal, que hoje e sempre nos urge uma conversão autêntica, temos de vencer a compreensível hesitação de Pedro e deixar-nos servir por um Deus humilde, que nos olha de baixo para cima, para nos lavar os pés…

Compreensível hesitação de Pedro, demorada compreensão nossa, de como é o Deus de Jesus Cristo, pedindo que O deixemos servir-nos. Na verdade, insistimos em reter Deus na grande altura, como se O dispensássemos da vida “cá em baixo”. E isto, mais para a determinarmos nós e ao nosso modo, do que por Lhe respeitarmos a indesmentível transcendência. E talvez porque aceitá-Lo assim, como Jesus insiste que aceitemos, implica valorizar a extrema simplicidade das coisas como lugar onde Deus nos procura; implica servi-Lo humildemente nos outros, em quem sempre se apresenta e nos espera. – Custa tanto aceitar um Deus que se ajoelha e nos quer lavar os pés!

E, no entanto, é assim. Acompanhamos hoje a instituição da Eucaristia e do sacerdócio da nova aliança. E nem uma nem outro significam grandezas que ofusquem: pão e vinho consagrados, para serem o próprio Deus oferecido; um pequeno grupo de discípulos, consagrados também, para que a memória daquela oferta não se extinga mais na terra.

Aceitemos a Deus, que em Jesus se entrega em simplicidade tamanha. Partamos como os hebreus daquela noite, com o essencial do que somos e havemos de oferecer, se urgentemente partirmos. Rendamo-nos de vez à evidência cristã das coisas, à exigente humildade de Deus.

Para não esquecermos, e realmente cumprirmos, o que a seguir nos ordenou Jesus, nosso Cordeiro e Pastor: «Se Eu vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu o fiz, vós façais também».

D. Manuel Clemente
Sé do Porto, 28 de março de 2013

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