O cónego Luis Manuel Pereira Silva, professor de liturgia na Universidade Católica Portuguesa e pároco da Sé de Lisboa, apresenta os momentos centrais do ciclo de celebrações que leva os católicos da Quinta-feira Santa ao Domingo de Páscoa.
Agência ECCLESIA (AE) – O que celebra a Igreja nestes dias centrais do seu calendário litúrgico?
Luis Manuel Silva (LMS) – A Igreja celebra, anualmente, de maneira solene a Páscoa, a que chamamos o Tríduo Pascal (começa na Quinta-feira à tarde com a celebração da Ceia do Senhor e termina no Domingo de Páscoa, com as segundas vésperas). Na Quinta-feira Santa, o olhar e toda a vida da Igreja se centra no cenáculo, onde Jesus instituiu a Eucaristia e onde nos deixou o mandamento novo do amor. Expresso, concretamente, no gesto que São João nos relata, no capítulo 13 do seu evangelho, com o lava-pés.
AE – A espiritualidade da Quinta-feira Santa está centrada na Ceia do Senhor?
LMS – Na instituição da Eucaristia, onde Jesus dá um sentido novo a todo aquele rito. Ele próprio o diz, quando pega no pão e no vinho, «tomai e comei, tomai e bebei, este é o meu corpo, este é o meu sangue». A Páscoa começa com a própria celebração histórica, para Jesus, na última ceia, como uma nuvem da paixão do Senhor. Jesus celebra a última ceia, já envolvido por todos os acontecimentos.
Na última ceia, Jesus institui a Eucaristia de maneira a que a Igreja – ao longo dos séculos – possa sempre celebrar e renovar o memorial da Páscoa de Jesus, através de elementos que Ele próprio escolheu na última ceia. Elementos que ficassem como sinais, como presença, da sua vida e da sua obra redentora.
AE – O pão, a água e o vinho…
LMS – São elementos que Jesus escolheu na ceia hebraica. No entanto, é bom recordar que a ceia hebraica tinha outros elementos, como o cordeiro pascal, as ervas amargas. Há aqui um mistério de uma vida dada e de uma vida renovada que a Igreja pode, cada vez que celebra a Eucaristia, tornar presente. Isto é o aspecto mais impressionante, Jesus deixa-se presente para que o cristão, o baptizado, vá peregrinando no tempo, mas alimentando-se do pão que é da eternidade.
AE – Mas existe um segundo elemento desta ceia?
LMS – É o mandamento novo do amor. Jesus expressou-o no gesto do lava-pés. Realiza-o antes da própria instituição quando se levanta da mesa e coloca o avental. Este gesto – socialmente no tempo de Jesus era feito por criados e escravos – de lavar os pés aos presentes. Jesus toma, este gesto, como sinal daquilo que depois, historicamente, vai realizar na cruz: dar a vida e dá-la até ao fim.
O lava-pés é como que uma pré-figuração daquilo que será o acto supremo de Jesus na cruz de entrega, de doação de todo o seu ser, de toda a sua vida humana na cruz para nossa redenção. É um gesto que a liturgia da missa da ceia do Senhor tem e que é proposto, não é obrigatório, mas de renovarmos o lava-pés.
É interessante este aspecto. Jesus, neste gesto, escandaliza os discípulos e Pedro verbaliza esse escândalo. Jesus é firme com São Pedro: “Deixa que se cumpra o que é de justiça”. E depois termina: “Se eu que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, vós, meus discípulos, deveis lavar os pés uns aos outros”.
É nesta linha, que interpreto o Papa Francisco de ir celebrar a missa da Ceia do Senhor numa prisão de menores. É uma maneira, digamos, ao nível ritual, de valorizar este gesto. Normalmente, nas paróquias escolhe-se um grupo de paroquianos (escuteiros, jovens, adultos) e o pároco lava-lhe os pés.
AE – Recorda-se de algum lava-pés em especial?
LMS – Numa Páscoa, celebrei a Ceia do Senhor na Comunidade de Santo Egídio (Roma): foram lavados os pés, nesse gesto, aos pobres, os doentes, os representantes das faixas da comunidade cristã. Formas de valorizar o rito e não o infantilizar. O lava-pés deve ser a expressão de uma atitude constante da comunidade cristã, que ao celebrar a Ceia do Senhor, expressa naquele gesto a sua constante solicitude ao longo do ano por todo este tipo de pessoas ou situações humanas que se vivem.
AE – Estas são as cruzes diárias, mas a Cruz é o símbolo, em destaque, na Sexta-feira Santa?
LMS – Em Sexta-feira Santa, no horizonte da Igreja, ergue-se a Cruz do Senhor. A cruz como sinal da pior das mortes, da morte mais infame, mas que para nós, cristãos, é o sinal da glória. Por exemplo, em São João, é importante este sentido da glória da cruz. Aliás, Jesus passa a sua vida pública, em São João, a dizer: “Ainda não chegou a minha hora”. Repete esta expressão várias vezes, até que quando sobe a Jerusalém, para celebrar a Páscoa pela última vez na sua vida e fará a sua própria Páscoa, Jesus diz, abertamente, que “chegou a hora”.
Esta hora, é a hora da cruz, da glorificação que ao mesmo tempo é paradoxal. A crucificação era para os malfeitores.
AE – Como é que a Igreja recorda esses momentos? Como exalta a cruz em Sexta-feira Santa?
LMS – Nos primeiros séculos, a cruz era olhada com uma certa relutância, devido a este aspecto de ignomínia. Até na arte cristã, a cruz não aparece logo. Depois há uma reabilitação da cruz, como sinal da glória.
A estrutura da celebração de sexta-feira tem três momentos: liturgia da palavra, apresentação e adoração da santa cruz e o rito da comunhão.
Depois da comunidade cristã ter escutado todo o relato da paixão, meditado o texto de Isaías e a carta aos hebreus, a Igreja centra-se na contemplação, quando a cruz entra (a celebração começa sem cruz no templo, nem velas acesas, um total despojamento).
A cruz é apresentada e a comunidade cristã aclama-a por três vezes quando se diz: «Eis o madeiro da cruz no qual esteve suspenso o Salvador do mundo».
AE – Esta aclamação é um misto de adoração, exaltação e súplica?
LMS – Verdade. Diante da cruz do Senhor desvanece-se tudo aquilo que no ser humano nos afasta da cruz: orgulho, auto-suficiência, inveja… Contemplando a cruz do Senhor e o que ali esteve de decisivo para a história da humanidade, a morte e a vida travaram um duelo admirável. Este duelo travou-se na cruz. Naquela morte está o drama da história da humanidade, o drama da história de cada um de nós.
AE – A dramaticidade da Sexta-feira Santa dá lugar ao silêncio no sábado santo que desemboca na vigília pascal. Uma celebração carregada de simbolismo?
LMS – A vigília pascal é a grande noite dos cristãos. É a santa noite dos cristãos. Aliás, na liturgia há uma valorização da noite. Nessa noite, a Igreja reunida aguarda, expectante, a Ressurreição do Senhor. Celebramos a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte. A vigília pascal é também uma vigília cósmica onde os quatro elementos da natureza estão presentes: terra, ar, fogo e água. Estes elementos foram escolhidos por Ele para a vida sacramental da Igreja.
AE – A luz irrompe da escuridão…
LMS – Em todo o tempo pascal, o círio estará ao lado do ambão. É nessa luz de Cristo Ressuscitado que a comunidade cristã lê as escrituras e toda a história da salvação.
AE – Na liturgia baptismal surge o símbolo da água.
LMS – A bênção da água. Nessa água serão baptizados os catecúmenos e com essa água é aspergida toda a assembleia cristã. A assembleia renova, de maneira solene, os votos do seu baptismo. A água aparece como símbolo da vida. O baptismo é este viver para uma vida nova. Na água do baptismo morre o homem velho.
AE – Esse homem novo recebe mais tarde o Crisma. Esse sopro do Espírito Santo.
LMS – Esse é o símbolo do ar. É o símbolo da vida renovada e confirmada. Toda a palavra proclamada vive neste sentido da simbólica do ar.
AE – E onde encontramos o símbolo da terra?
LMS – A terra está presente no pão e no vinho. Celebrar a Páscoa de maneira solene não é um conjunto de ritualidade. É uma vida que se vai transformando através da realidade sacramental.
SN/LFS