O silêncio nas transmissões televisivas

Na Missa do Terreiro do Paço, celebrada pelo Papa Bento XVI, em maio de 2010, em Lisboa, assistiu-se a algo de único, sob o ponto de vista de transmissão televisiva: três minutos e trinta e três segundos de silêncio.

Na Mensagem do Santo Padre para 46.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, intitulada “Silêncio e palavra: caminho de evangelização” são sublinhadas disposições fundamentais para a atitude religiosa do homem crente. Segundo Bento XVI, só o silêncio gera a contemplação e a escuta. É esta atitude interior exigente que permite ao homem de fé “entrar no silêncio de Deus”. Nesta sequência, se nos debruçarmos sobre o n.º 57 da Exortação Apostólica “Sacramento da Caridade” (Bento XVI, 2007:85), verificamos que o Santo Padre afirma ter a palavra “participação” sacramental adquirido um significado mais amplo através dos meios de comunicação. Há, por conseguinte, uma nascente de possibilidades relativamente à presença da eucaristia na vida dos crentes através da TV.

O Papa refere, relativamente à Missa televisionada, que não deve ser transcurado o tempo precioso de ação de graças depois da comunhão, sendo muito útil que se permaneça em silêncio (ibid:76). O silêncio, assim, é entendido como uma comunicação que manifesta, no tempo, no espaço, no corpo, no trabalho, no comer, as «virtudes que desabrocham nas faculdades interiores» – tal como a humanidade de Jesus manifesta a divindade do Pai (Mattoso 2009: 93). Trata-se do silêncio entendido como a comunicação que purifica o que há de demasiadamente humano (ibid: 83-84).

Ora, a liturgia não poderia encontrar melhor campo no silêncio para fazer medrar a escuta do mistério de Deus. Toda a verdadeira adoração é silêncio (Smedt, 2006: 41). As transmissões litúrgicas pela televisão comportam o desafio de superarem a essencial dimensão física do ato celebrativo: a assembleia celebrante, o templo, a relação mística com os dons eucarísticos. Todavia, nas palavras de Bonaccorso (2000: 20-21), a transmissão em direto possibilita uma comunhão com a comunidade eucarística que celebra no templo em simultâneo, apesar de o espetador não estar fisicamente presente. Pretende-se que quem assista à missa pela televisão se considere parte da família de Deus “no segredo, silêncio” das suas casas. Se as transmissões eucarísticas têm como objetivo, sob o ponto de vista da vivência cristã, a comunhão com o ato sacramental, esta dimensão comunional estabelece-se também pelos silêncios que fazem parte da liturgia. Para haver a designada sensação do silêncio nas transmissões audiovisuais, é necessário, no mínimo, que ela possua uma duração de três segundos. Esta referência temporal confere espessura ao próprio silêncio, podendo dizer-se que sem tal referência – os três segundos mínimos – o silêncio se tornaria impercetível (Rodríguez, 1998: 152). A esta pausa no curso audiovisual, Rodríguez (1998: 153) dá a designação de “efeito-silêncio”. As margens temporais do “efeito-silêncio” poderão oscilar aproximadamente entre os três e os dez segundos. Na Missa do Terreiro do Paço, celebrada pelo Papa Bento XVI, em maio de 2010, em Lisboa, assistiu-se a algo de único, sob o ponto de vista de transmissão televisiva: três minutos e trinta e três segundos de silêncio após a homilia e um minuto e nove segundos durante o momento de ação de graças. O que será que o Papa quis transmitir à Igreja com tanto silêncio? A transmissão televisiva da Praça do Comércio poderia constituir um case study no que aos planos televisivos diz respeito.

Perfilhando a perspetiva de Bazzan (2000: 142-143), parece-nos que encontrar uma verdadeira linguagem televisiva capaz de traduzir de forma fidedigna a linguagem litúrgica poderá ter a ver com os planos passíveis de captar nas eucaristias, uma vez que são eles que traduzem uma profunda qualidade mistérica.

A captação de planos referentes a pormenores litúrgicos favorece a interioridade silenciosa: as mãos unidas de um crente, os diversos livros litúrgicos, alfaias litúrgicas, as mãos estendidas para receberem a comunhão (Franco, 2002:44). Conclui-se, então, na sequência do visionamento da transmissão já citada, que uma emissão de cariz religioso, para ter uma boa montagem, não necessita de se submeter à moda mediática; precisa, sobretudo, de ser fiel à beleza da sua identidade religiosa (Duquoc, 2007:22).

Não é o silêncio a manifestação de um indizível? A televisão, sendo também veículo para a linguagem do silêncio, abre um sulco àquilo que há de mais profundo. Na ótica de Torres (2010b), sendo o silêncio o contrário da televisão, pode através dela ser emitido como “o momento mais profundo da eucaristia”.

 

Padre José Paulo Machado

Diocese de Angra

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Bibliografia:

Bazzan, Antonello (2000), “Realtà Liturgica e Comunicazione Ciberspaziale. Verso Una Nuova Liturgia?”, Rivista Liturgica, Anno LXXXVII, nº 1, série 3, Padova: Edizioni Messaggero, pp. 137-144.

Bonaccorso, Giorgio (2000), “Azione Rituale e Azione Dramática”, Rivista Liturgica, Anno LXXXVII, nº 1, série 3, Padova: Edizioni Messaggero, Padova, pp. 13-30.

Duquoc, Christian (2007). “Os media e o cristianismo. «Só existe aquilo que se dá a ver»”, Communio, nº 1, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, pp. 13-25.

Franco, Lever (trad) (2002), La Transmissione delle celebrazioni liturgiche alla radio e in televisione, nº 169, Alemanha, Austria e Suiça: Segreteria della Conferenza Episcopale Tedesca em colaboração Istituti Liturgici Tedeschi della Germania, Austria e Svizzera.

Mattoso, José (2009), “Taciturnidade e silêncio: Para a história do silêncio”, Didaskalia, nº 1, vol. 39, Lisboa: Universidade Católica Editora, pp. 69-93.

Smedt, Marc de (2006), Elogio do Silêncio, Lisboa: Sinais do fogo.

Rodriguez, Ángel (1998), La dimensión sonora del lenguaje audiovisual, Barcelona: Editorial Paidós.

Torres, Eduardo Cintra (2010b), “E não se podem calar?”, Público, 14 de Maio, Lisboa, p. 13.

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