Decifrar os silêncios

Alexandra Serôdio, jornalista

‘Existe no silêncio tão profunda sabedoria que às vezes ele transforma-se na mais perfeita resposta’ (Fernando Pessoa)

Nunca lhe perguntei o nome, mas ouvia-a atentamente durante escassos minutos. Disse pouco, mas o olhar que marcava um rosto que refletia o passar dos anos, acabou por me revelar tudo. Chamei-lhe Maria, uma mulher igual a tantas outras, mas cuja vida sofrida se refletia em cada palavra e em cada gesto. Interrompeu as preces que fazia junto da Capelinha das Aparições, apenas para dizer que acreditava, que gostava de estar ali porque simplesmente se sentia “mais leve”.

O silêncio desta mulher disse-me muito mais que outras entrevistas que realizei nesse dia. Foram os gestos e o olhar as palavras que retirei daquela imagem, que por muitos anos que passem dificilmente conseguirei esquecer.

Adepta da palavra e da escrita, há muito que descobri que são os silêncios que transmitem a verdadeira realidade das coisas e da vida. Decifrar esses silêncios e interpretar os gestos que os acompanham, tem sido um desafio constante para mim, jornalista, que faz da escrita o seu modo de vida.

Aprendi com Maria a decifrar os silêncios…. a deter-me em olhares, rostos e mãos… e “reinventar” uma forma diferente de escrever as histórias. E são as que mais gosto de escrever.

Detenho-me com frequência, perante uma multidão silenciosa que enche o recinto do santuário de Fátima, nos dias 12 e 13 de maio. Olho os rostos e os olhos e compreendo a emoção de se estar, ali, devido a variadíssimas razões pessoais, mas a principal é a procura de algo maior, que torne a vida mais fácil de viver.

Traduzir estas emoções para o papel é sempre um desafio para quem, ano após ano, está no mesmo local e quase incompreensivelmente sente as mesmas emoções.

As mesmas que senti quando olhei a multidão de jovens, que em agosto último esteve em Madrid na Jornada Mundial da Juventude. O que os moveu? Por que razão? Com que objetivo? A alegria estampada nos rostos, os olhos brilhantes permitiram decifrar algumas perguntas e perceber que, também eles, procuram algo maior para as suas vidas. As respostas dadas pelos jovens permitiram-me escrever as histórias, mas foram os gestos e os olhares que me transmitiram muito daquilo que não foi dito.

Foi em cima de um telhado, na Praça de S. Pedro, no Vaticano, que em maio de 2010 tentei perceber a razão daqueles que deixaram as suas casas, as suas famílias, e percorreram milhares de quilómetros para assistirem às cerimónias de beatificação de João Paulo II, as mesmas que as televisões transmitiram em todo o mundo. Mas tal como eu, jornalista imparcial em serviço, me arrepiei quando o pano deixou perceber o rosto do novo beato, os que se encontravam naquela praça também tremeram… e aplaudiram. Recordei as minhas vivências de adolescente e jovem e, vislumbrei diante de mim, aqueles que como eu, cresceram a admirar aquele Papa.

Já no interior da Praça e em plena missa, olhei os rostos, os olhos húmidos das lágrimas que teimosamente caiam, e nas mãos unidas segurando uma pequena fotografia. Não foi difícil interpretar as emoções e transcrevê-las para o papel. Afinal, esta é a minha missão de jornalista: contar histórias, enquadrá-las num ambiente e relatar as emoções, muitas das quais também sentidas por mim própria.

Interpretar e comunicar estes “silêncios” tem sido uma das minhas tarefas de jornalista. Acredito que deva ser também um objetivo de quem quer perceber o que move hoje a sociedade. Mais que as palavras ditas de forma mais ou menos agradável ou mesmo emotiva, são os gestos, os olhares e os silêncios que devem ajudar a interpretar a verdadeira realidade.

Alexandra Serôdio, jornalista, «Jornal de Notícias»

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