Iniciativa da Igreja Católica
O Serviço Pastoral a Pessoas com Deficiência foi criado no âmbito da Pastoral Social pela Conferência Episcopal em novembro de 2010 porque a Igreja reconheceu que era necessário desenvolver a atenção dos serviços de pastoral a esta problemática que é transversal a toda a vida pessoal e social.
A sociedade portuguesa e a problemática da deficiência
A problemática da deficiência está intimamente ligada com o sofrimento e a consciência de que não somos sempre independentes e capazes. Na nossa sociedade em que a autonomia e independência pessoais e a excelência são altamente valorizadas, não é fácil lidar com as limitações: as nossas e as dos outros.
Pode dizer-se, no entanto, que nos últimos anos tem havido algum progresso: as crianças com deficiência estão nas escolas públicas onde lhes é “garantido” o direito à educação, o que há uns 30 e alguns anos não acontecia. Mas este direito que lhes é reconhecido, tem práticas muito deficitárias, tendo pais e crianças e mesmo técnicos que enfrentar inúmeras dificuldades. Para além deste direito, socialmente em Portugal, consideramos que as pessoas com deficiência e as suas famílias estão muito sós com os seus problemas por falta do reconhecimento social da questão da deficiência.
Do ponto de vista das respostas sociais há alguns apoios residenciais e ocupacionais para os adultos que também não havia há alguns anos, mas são muito pouco diversificados, por um lado e, por outro, as respostas que existem são tendencialmente segregadoras das pessoas, em especial, as que têm deficiências intelectuais. Existe, de forma ainda pouco expressiva e, no contexto de crise atual ainda mais reduzida, uma preocupação assistencial, mas a preocupação com o acompanhamento pessoal e existencial com vista à inclusão é praticamente inexistente ou muito pouco desenvolvida.
Há legislação, que desde vários anos, exige a eliminação de barreiras físicas e arquitetónicas. Mas, quem a cumpre? E, se não cumpre, nada lhe acontece. Quando alguém afetado reclama, é-lhe respondido que não tem razão ou que não é possível – os comboios da CP, os Centros de Saúde, a Repartição de Finanças, a Segurança Social, as Igrejas… Apesar da lei garantir o direito ao acesso, na prática esse direito não existe e as pessoas afetadas sentem-se discriminadas e sobretudo isoladas.
Do ponto de vista das relações humanas e da legislação que deveria proteger “os maiores incapazes” as disposições legais são anacrónicas, desajustadas e afirmaremos mesmo ilegais à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que Portugal ratificou em 2009. Deste ponto de vista, em Portugal, as pessoas estão isoladas e as famílias sozinhas e sem medidas de acompanhamento adequadas.
A deficiência é sempre um desafio difícil e, por isso, todos nós tentamos evitar confrontar-nos com ele: todos – pais, familiares e colegas, a sociedade em geral e a Igreja, na sua organização, não escapam a isto.
Em Portugal fala-se pouco, de um modo geral, da deficiência e instalou-se mesmo uma tendência para usar expressões eufemísticas sob pretexto de que falar de deficiências é estigmatizar.
Do nosso ponto de vista os únicos problemas com que conseguimos lidar são aqueles que somos capazes de nomear. No século XX aprendemos a nomear e depois a estudar vários fenómenos para os quais se foram encontrando respostas e fomos aprendendo a importância do reconhecimento social dos fenómenos para a qualidade de vida das pessoas afetadas. A tentação de não ver, não os ter em conta na conceção das medidas necessárias, é enorme e tem como consequência a vitimização e o isolamento das pessoas afetadas por problemas sociais complexos e difíceis. Quando causam sofrimento, tanto melhor se as pessoas afetadas se calarem e não “deem parte de fracos”, pois destes “não reza a história”.
A organização da Igreja.
Se é esta a situação social das pessoas com deficiência e a Igreja vive enraizada na sociedade, não é muito estranho que nas instituições da Igreja, nas paróquias e nos diversos movimentos não se exprima, de um modo geral, a preocupação com esta população, que constitui cerca de um 10% da população em geral.
Deste modo e neste contexto, não tem sido fácil o arranque e a implantação do Serviço Pastoral, porque a consciência do problema é muito baixa. Não se pode falar duma rejeição ativa, mas talvez antes duma rejeição por omissão e falta de consciência do papel destas pessoas para a construção duma sociedade mais humana.
Conheço experiências muito positivas de catequistas que ficaram aflitos quando receberam num dos seus grupos uma criança, por exemplo, com deficiência intelectual, mas depois conseguiram entender-se com ela e viveram, por dentro, a experiência da simplicidade do contacto e do contributo daquela criança para o grupo todo. Mas estas experiências e os materiais que a pessoa pode ter desenvolvido para aquele caso não passa para outros e, em Portugal, ainda não há um departamento da catequese de adultos ou de infância que reflita sobre estas questões.
Deste modo, pode dizer-se que há alguns progressos que se verificam a nível pessoal mas continua a haver uma atenção deficitária às diferentes problemáticas ao nível do planeamento e da organização dos serviços – de todos os serviços pastorais. Os surdos não têm catequistas preparados e salvo raras exceções (Leiria é um exemplo a seguir), não há missas dominicais com tradução em linguagem gestual ou com a preocupação explícita de estabelecer a comunicação com pessoas que não sendo totalmente surdas, têm limitações auditivas. E, no entanto, há práticas já instaladas que podem facilitar essa missão e tornar-se em práticas conscientes de resposta a estas questões.
Exemplos recentes ao nível da catequese: A Maria (os nomes reais foram alterados) pertencendo a uma comunidade Fé e Luz foi incentivada a integrar-se num grupo de catequese da paróquia e fez a 1ª comunhão, a profissão de fé e seguiu num grupo de preparação para o crisma. Quando chegou a altura, disseram-lhe que ela não podia porque não tinha aprendido o necessário. Foi preciso a intervenção de membros da comunidade para que ela fosse crismada. Recentemente um pároco interrogava-se sobre o que se podia exigir ao José e ao João, com deficiência intelectual, para se saber quando poderiam receber os sacramentos.
Repare-se que esta interrogação é muito importante e significa um grande respeito pela pessoa como é, mas é necessário que seja acompanhada por uma reflexão organizada e atualizada sobre o tema. Existem, desde há muitos anos orientações de um grupo de Bispos, mas já não são conhecidas… Enfim, acreditamos que o Espírito Santo vai iluminando as pessoas que aceitam confrontar-se com o problema, e há sinais disso. É, contudo, necessário agir de forma mais organizada e com vontade de, com solicitude maternal, ir ao encontro destas pessoas de forma ativa e existencial e não só assistencial.
Bento XVI na encíclica Sacramento da Caridade, no n.º 58 diz que “seja garantida a comunhão eucarística, na medida do possível, às pessoas com deficiências intelectuais, batizados e crismados: eles recebem a Eucaristia na fé também da família ou da comunidade que os acompanha”. Isto é um desafio muito explícito às nossas paróquias e grupos organizados.
Dei o exemplo da catequese, mas ao nível da liturgia acontece o mesmo: há paróquias com pessoas com deficiência a acolitar ou com outros papéis, mas são raras. Conhecemos vários exemplos em que as pessoas acolitam nas missas enquadradas pelas comunidades Fé e Luz, mas se forem para as suas paróquias isso não lhes é permitido.
Alegam-se razões para isso: não se pretende “expor” estas pessoas, sobretudo as que têm marcas visíveis… mas a comunidade paroquial perde a riqueza da expressão espontânea que muitas destas pessoas trazem para as celebrações e, por outro, lado estas pessoas são reduzidas a um papel passivo e “invisível”. Quem vai para o altar, de facto, expõe-se, mas se se expõem as outras pessoas porque é que estas devem tornar-se “invisíveis”? Daremos uma explicação rápida: porque a representação social destas pessoas é que são um peso, são uma “cruz”. Estamos desafiados a olhar para elas como pessoas e não as reduzir à sua deficiência.
São estas as dificuldades principais que sentimos ao tentar construir este serviço, mas há sinais de esperança. O maior deles todos é o investimento da Conferência Episcopal. Trilhar caminhos novos não é fácil, é preciso abri-los e os caminhos que implicam a conversão são difíceis, mas necessários. Mas sabemos que não estamos sós e que recebemos todos de Jesus umas “ordens” muito claras: “aquilo que fizerdes aos mais pequeninos… é a Mim que o fazeis”. S. Paulo ao falar do Corpo místico realça a necessidade de ver estes irmãos como parte importante do nosso corpo que precisa de ser tratada com cuidado e atenção especial.
Estamos confiantes de que as vias para a construção duma Igreja mais atenta a esta problemática é possível e estamos com vontade de contribuir para tal.
Alice Caldeira Cabral
Maria Isabel do Vale