Homilia do bispo de Leiria-Fátima na Missa Crismal

O sacerdote, o culto e a cultura

A Quinta-feira Santa é um grande dia festivo para todo o Povo de Deus que celebra três dons preciosos que o Senhor Jesus lhe deixou em testamento perene: a eucaristia, o sacerdócio ministerial e o mandamento novo do amor, a caridade! É também um dia extraordinário para os sacerdotes. É a festa anual do nosso sacerdócio que reúne todo o presbitério diocesano com o bispo na celebração da missa crismal. Saúdo pois festivamente todos os fiéis aqui  reunidos – leigos, consagrados, seminaristas -, mas de modo particular os sacerdotes a quem quero testemunhar a minha profunda comunhão fraterna, parafraseando Santo Agostinho: “Para vós sou bispo; convosco sou sacerdote”.

Cada um de nós, caros irmãos padres, percorre hoje, com a mente e o coração, o próprio caminho que o levou ao sacerdócio e, em seguida, o próprio itinerário do seu sacerdócio que é, sem dúvida, um percurso de vida e de serviço a Deus e aos homens.

Todos recordamos, com grata emoção, o dia e a hora em que, após o canto das Ladainhas prostrados por terra, o bispo impôs as mãos sobre cada um de nós, em profundo silêncio, transmitindo-nos o dom santo e sublime do sacerdócio.

Todos recordamos hoje os companheiros de caminho, de modo particular, os que este ano celebram o seu jubileu a quem endereçamos os nossos parabéns e ainda os que desde o ano passado partiram para a casa eterna do Pai.

 

O padre, sentinela da humanidade e dignidade do homem

Celebramos esta festa do nosso sacerdócio dentro do Ano Pastoral diocesano, que tem como lema “Testemunhas de Cristo no mundo”, e por ocasião do 50º aniversário da abertura do II Concílio do Vaticano cujo propósito, segundo a bula convocatória do Papa João XXIII, era “pôr o mundo moderno em contacto com a força vivificante do Evangelho” e, nesta linha, pôr a Igreja em diálogo com o mundo para realizar a sua missão salvífica. O Concílio queria uma Igreja mais próxima do mundo e um mundo mais próximo do Evangelho. Eis porque a nossa meditação de hoje sobre o sacerdócio se situa nesta perspetiva.

A Palavra de Deus proclamada é iluminadora a este respeito. A homilia de Jesus na sinagoga  de Nazaré tem a mesma importância que o sermão da montanha em S. Mateus. É, de facto, o programa do Reino de Deus que Jesus vem inaugurar na história. Nós podemos aplicar ao momento da ordenação sacerdotal as palavras de Isaías citadas por Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, consagrou-me com a unção e enviou-me…”. Compreendemos que, pelo ministério ordenado, somos sacerdotes com Cristo para a realização do Reino de Deus no mundo e para o mundo, neste tempo concreto em que vivemos.

O sacerdócio é na verdade um “sacramento social”, como lhe chamou João Paulo II, sacramento da compaixão de Deus pela humanidade. O sacerdote é escolhido dentre os homens e constituído para o bem dos homens, para curar as chagas dos corações atribulados, proclamar a libertação dos males que escravizam o homem, para o consolar no meio das múltiplas aflições e da solidão. Em síntese, trata-se de levar aos homens a ternura e a misericórdia, o perdão e a reconciliação, a fraternidade, a verdade e a liberdade, a esperança e a alegria que Jesus lhes oferece através do nosso ministério e da nossa vida.

É um serviço grande e fundamental em relação a cada pessoa e ao mundo pois toca as raízes da existência humana sobre a terra, os fundamentos da nossa humanidade e dignidade e ninguém pode substituir-nos nessa missão. Só o padre cuida, deste modo, da saúde e da beleza espirituais da sociedade e do mundo. Não basta só a prosperidade económica. É importante que isto seja dito, para não cedermos à tentação de nos sentirmos supérfluos ou inúteis. “Nós somos mais necessários que nunca, porque Cristo é mais necessário que nunca” – afirmou João Paulo II.

 

O culto e a cultura

O sacerdote não deve permanecer sempre num âmbito puramente sacral, fechado no perímetro do templo. Não poderá servir bem os homens alheando-se da sua vida e do seu ambiente. Ele deve ir ao encontro do mundo. A sua palavra é um testemunho que deve chegar a todas as encruzilhadas da história, às praças da cidade e confrontar-se com a cultura. Hoje, é uma urgência evangelizar a cultura contemporânea porque é ela que determina os modos de pensar, que propõe os modelos de comportamento e inspira os modos de ver a realidade. Limito-me  a sublinhar três aspetos mais prementes.

Antes de mais, é importante que o sacerdote entre no mundo e se dê conta da “perda (ou erosão) da memória” como fenómeno típico da sociedade em que vivemos. A cultura pós moderna, na ânsia de viver sofregamente o instante imediato, corre o risco de “não recordar”, de perder as próprias raízes, a sua matriz cristã. Goethe dizia que a língua materna da Europa é o cristianismo. Hoje fala-se cada vez mais inglês, mas esquece-se que na base desta e doutras línguas e culturas da Europa está uma visão cristã quase esquecida na sua totalidade e até apagada. Eis então a importância do recordar a beleza e a riqueza da fé cristã geradora do melhor humanismo, do recordar que entre o céu e a terra há um canal de comunicação.

“Recordar” é um termo muito belo que quer dizer “reportar ao coração”. A este propósito desejaria citar as palavras de Bernanos, grande escritor católico francês, que na sua obra La France contre les Robots escrevia: “Uma civilização não rui como um edifício. Dir-se-ia mais exatamente que se esvazia, pouco a pouco, da sua substância até que só resta a casca”.

Lutar contra esta “desmemorização” é fazer frente à cultura do vazio de ideais e valores, à cultura do efémero e do provisório, da superficialidade e da banalidade, para propor de novo a ética, a moral, o Decálogo, a espiritualidade. Assistimos à expansão de um deserto espiritual e moral na cultura e na sociedade, que revela não só a falta de ética, mas também a falta de estética, de beleza, de estilo e de dignidade. Eis aqui um segundo aspeto premente.

É importante voltar a propor os valores perante o vazio espiritual atual. Os dez mandamentos permanecem sempre válidos para a relação do homem com Deus e com os outros homens, não obstante sejam violados todos os dias. Permanecem como uma advertência clara e precisa e é nossa missão lembrá-lo. “Não vos afadigueis em pensar para onde vai o mundo, mas sim para onde é preciso que vós vades, para não calcardes cinicamente a vossa consciência, para não vos envergonhardes da moralidade atraiçoada”, escreve o filósofo italiano, Benedetto Croce, consciente do grande risco de se renunciar a uma moralidade necessária.

Uma terceira e última consideração diz respeito à tentação dos extremismos que ameaçam atingir e fragmentar a sociedade: o primeiro é o relativismo, o sincretismo que dissolve a nossa identidade e nega a possibilidade de alcançar e partilhar verdades e valores universais; o outro é o fundamentalismo que defende os seus valores e exclui todo o diálogo. Não devemos renunciar à nossa peculiar identidade; mas, por outro lado, não podemos rejeitar o diálogo. O cristianismo é por natureza diálogo, abertura ao outro, respeito do outro no mundo plural em que vivemos: diálogo com o mundo, com a cultura, com todos os homens e mulheres de boa vontade.

Este é um campo aberto à nossa missão de padres para este tempo. Pede-nos um grande investimento de ousadia, de criatividade e de autêntica conversão pastoral, para que a Igreja seja sal da terra e luz do mundo e não uma Igreja fechada em si mesma, de costas voltada para o mundo. Começámos a abrir caminho neste ano pastoral. Nos encontros com os grupos socioprofissionais em cada vigararia tenho encontrado abertura, apreço e entusiasmo por esta iniciativa que parece corresponder a um anseio e a uma necessidade sentida.

 A presença e a missão dos cristãos no mundo requerem porém que sejamos capazes de sair de nós mesmos e de estabelecer pontes e criar laços com a sociedade nas suas variadas expressões; e também exige uma boa formação cultural dos padres que lhes permita fazer a síntese entre fé e cultura para ajudar os fiéis a ler a realidade complexa atual, a discernir os sinais dos tempos, a estar neste mundo como cristãos. Outrora, o padre era uma figura de referência cultural.  Hoje, com a democratização do ensino, a sólida formação cultural do presbítero torna-se ainda mais necessária para a sua missão e para a sua estatura humana e espiritual à altura do nosso tempo.

Um teólogo russo ortodoxo e leigo, Pavel Evdokimov, falando da liturgia, escreve que nós construímos catedrais com portais belíssimos que isolam a área sagrada.  Dentro está a perfeição e a beleza do culto, a plenitude;  lá fora está a praça com os seus ruídos e comércios, com o riso e as lágrimas, as alegrias e as dores, até com as blasfémias, com tudo o que faz parte da existência quotidiana. Seria necessário, porém, um portal aberto através do qual o vento do Espírito pudesse sair do templo para ir em direção à praça e torná-la fecunda levando luz, beleza, perfume, esperança; depondo uma semente de eternidade mesmo onde tudo é profano, secular, a semente da santidade no mundo. “A fé, a oração e a justiça devem andar abraçadas”.

 

“Quereis oferecer-vos a Deus?”

A liturgia da Quinta-feira Santa é um momento especial no qual somos convidados a renovar e reavivar em nós a graça sacramental do sacerdócio e o “sim” do nosso acolhimento e da nossa entrega total. É também uma ocasião para o fazermos em íntima ligação com a espiritualidade da mensagem de Fátima neste ano da comemoração do centenário das Aparições. A formulação da renovação das nossas promessas é traduzida esplendidamente pela pergunta de Nossa Senhora aos Pastorinhos “Quereis oferecer-vos a Deus?” para colaborar mesmo com os vossos sofrimentos no seu desígnio sobre o mundo? Sim, também nós que suportamos “o cansaço do dia e o seu calor”(Mt 20, 12) nos múltiplos afazeres na vinha do Senhor ouvimos hoje esta mesma pergunta acompanhada pela mesma promessa consoladora “a graça de Deus será o vosso conforto”. Tal como os pastorinhos, também nós queremos dizer um sim de entrega inteira, sem reservas, ao Senhor, sendo todos de Deus, todos de Jesus e da sua Igreja.

A Virgem Santíssima, mãe solícita dos sacerdotes, nos assista e ajude a dar esta resposta de total oblação da nossa vida sacerdotal: Totus tuus! Todo teu, Senhor, nas mãos de Maria Imaculada! Todo teu pelo Coração Imaculado de Maria! 

Catedral de Leiria, 5 de abril de 2012

D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima

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