Mensagem do cardeal-patriarca de Lisboa para a Quaresma 2012

Introdução

A Quaresma é o tempo litúrgico que nos convida a situar a nossa vida cristã no essencial da sua verdade: a de peregrinos do Céu, na humildade da nossa fragilidade e na coragem da nossa fidelidade. Experimentamos já uma realidade que ainda não possuímos completamente. O desejo da plenitude é o motor da nossa fidelidade. Só no Céu viveremos plenamente a Páscoa de Jesus; mas ela é já a realidade decisiva da nossa vida. Em cada Quaresma, que o mesmo é dizer em cada Páscoa, somos chamados a viver com uma fidelidade renovada esta semente de eternidade que foi semeada em nós pelo Espírito de Cristo ressuscitado. É assim que o Santo Padre começa a sua Mensagem: “A Quaresma oferece-nos a oportunidade de refletir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito, este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e pela partilha, pelo silêncio e pelo jejum, com a esperança de viver a alegria pascal”.

A Mensagem de Bento XVI é muito bela; devemos todos partir dela para a vivência sincera da nossa Quaresma. Esta minha mensagem não pretende ser “outra mensagem”, ao lado da do Santo Padre. Quanto muito, posso considerar alguns dos desafios que nos lança, situando-os nas realidades concretas da nossa Igreja Diocesana.

 

A segurança da nossa fé

1. A fé é uma atitude que cresce e se aprofunda, à medida que nos leva a entrar em comunhão pessoal com Cristo e, por Ele, com Deus Trindade Santíssima. A Quaresma tem de ser tempo de aprofundamento da fé, pessoal e comunitária. O Santo Padre afirma: “Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua”. A firmeza ou a fragilidade da nossa fé tem aí a sua origem. Quem não vive a fé, torna-a mais fraca, menos segura, mais exposta às dúvidas; quem progride na fé, torna-a mais sólida, atitude inabalável, que vive a dúvida como um desafio, e enfrenta, sem vacilar, as diversas compreensões da vida que, hoje mais do que nunca, nos são dirigidas pelas vozes do mundo. A fragilidade da fé é a sua rotina, é a tibieza nos sentimentos, é a sua redução a tradições, que se vão esfarelando no embate com as vozes do mundo.

A firmeza da fé é um dom do Espírito Santo, o dom da fortaleza, o que nos recorda que só conduzidos por Ele crescemos na fé e que este crescimento nos aproxima mais de Deus e da plenitude da vida. A fé é para ser vivida, na ousadia da liberdade e da vida, e não para ser guardada no cofre das memórias de família. Sempre que dizemos “eu creio”, afirmamos a nossa decisão de vida, a sua compreensão e o itinerário para atingir a sua plenitude. A firmeza da fé foi a força dos mártires, o desafio dos santos, levou à coerência da vida, vivida na lógica da fé, da Palavra de Deus, da Palavra da Igreja, dos mandamentos do Senhor.

 

A persistência da esperança

2. A verdade da Quaresma reside na sinceridade com que nos relacionamos com Jesus Cristo, cuja Páscoa celebramos. Como diz o Santo Padre: “O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais”. À firmeza da fé, junta-se a persistência da esperança.

Vivem da esperança aqueles que já experimentaram a realidade definitiva da Páscoa de Jesus, inauguração da vida definitiva; e, porque já a experimentaram, desejam a sua plenitude. A esperança é persistência no que já se tem, como fruto da nossa união a Cristo, e desejo de aprofundar essa vida nova. O próprio esforço de fidelidade está ligado à esperança. Só o Espírito Santo pode alimentar em nós esse desejo de plenitude.

Num momento particularmente difícil que estamos a viver, são muitas as vozes a tentar suscitar a esperança. Nós, os cristãos, queremos viver a esperança teologal, isto é, aquela que só é possível com a força do Espírito, que nos faz desejar a plenitude da vida em Cristo. Esta esperança teologal engloba todas as realidades da nossa vida presente, que ganham em Cristo um sentido novo. A esperança é a virtude que nos ajuda a viver toda a realidade humana à luz da Páscoa de Jesus. A esperança exprime a fé no concreto da vida presente. Só a esperança teologal nos ajuda a não “desesperar” quando o sofrimento nos bate à porta.

 

A primazia da caridade

3. São Paulo afirma que, nesta vida presente, em que, unidos a Cristo, vivemos já as “primícias” do Reino dos Céus, permanecem a fé, a esperança e a caridade, mas que a maior é a caridade, a única que permanecerá no Reino definitivo (cf. 1Cor. 13, 8.13). Viver unido a Cristo é uma experiência de caridade: o amor com que Deus nos ama no Seu Filho e, com a força do amor de Deus, o amor com que nos amamos uns aos outros. A fé e a esperança são experiência do amor próprias da nossa situação de peregrinos do Reino dos Céus. Quando o cristão diz “eu creio”, no fundo ele diz: “eu amo” a Deus em Quem acredito; quando diz “eu espero”, ele diz: eu desejo deixar-me amar, e desejo amar de uma maneira cada vez mais generosa e total. É a caridade, vivida e desejada, que dá densidade à fé e à esperança.

 

O amor dos irmãos

4. O amor de Deus e o amor dos irmãos, para os cristãos, são um único amor, que é infundido no nosso coração pelo Espírito Santo. Quem ama a Deus, ama os irmãos. Se isso não acontecer, é porque o nosso amor a Deus não é sincero. A fé e a esperança exprimem-se, também, no amor fraterno.

Compreende-se, assim, que o Santo Padre, ao desafiar-nos para uma Quaresma vivida na profunda união a Jesus Cristo, ponha o acento no amor fraterno. Este não é redutível a esquemas impessoais de solidariedade; é amor de uma pessoa por outra, que se olham de frente, que se conhecem em toda a sua realidade. Noutro texto, o Santo Padre disse que a caridade fraterna é “um coração que vê”. Quando olhamos para o nosso irmão com o coração, quando ele nos comove, ele torna-se o nosso próximo. No fundo é ter para com os nossos irmãos a mesma atitude que a fé nos leva a ter com Jesus Cristo: olhá-lo de frente, como o outro que vem ao meu encontro, tentando perceber quem é e o que faz por mim. Ouçamos o Santo Padre: “é um convite a fixar o nosso olhar no outro, a começar por Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e indiferente ao destino dos irmãos”.

 

Olhar toda a realidade dos nossos irmãos

5. Pode acontecer que quando estamos sobretudo sensíveis às necessidades materiais, ignoremos a verdade espiritual do nosso irmão, a sua necessidade de conversão à fé e à esperança. Um falso sentido de respeito pela intimidade do outro, a perda da noção do que é verdadeiramente bom ou mesmo a perda da noção da diferença do bem e do mal, podem dispensar-nos de, ao olharmos para o nosso irmão, o amarmos em toda a sua realidade. Se a fonte do nosso amor fraterno é o amor com que Deus nos ama, a ajuda material aos irmãos pode ser ocasião do anúncio do amor de Deus e de convite à conversão. Eu posso matar a fome aos meus irmãos, mas não ficarei bem com a consciência se nada fizer para os ajudar a recuperar espiritualmente o caminho da vida. A caridade fraterna impele-me tanto a socorrer os meus irmãos nas necessidades materiais como a ajudá-los a descobrir Jesus Cristo e o amor de Deus. E isto é mais possível se a nossa ajuda for fruto da caridade que aprendemos com Jesus Cristo. A caridade vivida é sempre o anúncio da salvação.

 

A fé, a esperança e a caridade, e o anúncio da salvação

6. Convido-vos, pois, na sequência do Santo Padre, a vivermos esta Quaresma ao ritmo das três virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade, o que exige de nós uma coerência com a profundidade sobrenatural da vida em união com Cristo, de cuja Páscoa vivemos, e que nos preparamos para celebrar. Convido-vos a mergulhar no mistério de Deus, Trindade Santíssima e a arrastarmos para essa comunhão as pessoas a quem amamos com um amor que tem a sua fonte em Deus.

Como dissemos, a caridade fraterna é sempre anúncio de Jesus Cristo, que ao transformar o nosso coração, fez dele “um coração que vê”. O Patriarcado de Lisboa aceitou o convite do Santo Padre, através do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização, para participar num programa de evangelização com outras onze cidades europeias, entre as quais aquelas que organizaram o Congresso Internacional para a Nova Evangelização. Para nós, Diocese de Lisboa, a participação neste programa de Nova Evangelização será ocasião de reavivar a memória do que foi o ICNE entre nós.

Este programa tem a sua sede na Catedral e no ministério do Bispo diocesano. Tem como primeira concretização o anúncio da nossa fé, para as pessoas do nosso tempo, no realismo humano da nossa população. Será prioritariamente dirigido aos catecúmenos, às famílias, aos jovens, aos intervenientes na cultura, aos obreiros da solidariedade e aos responsáveis pela construção da comunidade.

Outras duas formas de anúncio completarão este programa: uma proposta atual da mensagem de Santo Agostinho, anunciando a fé cristã aos que não têm fé, e uma leitura do Evangelho de Marcos.

Para as comunidades cristãs, o anúncio será completado com outras duas iniciativas: vivência do mistério da reconciliação através do Sacramento da Penitência, e a partilha fraterna. A caminhada na fé supõe sempre o abandono ao amor misericordioso de Deus expresso no ministério da Igreja, que perdoa e reconduz os filhos pródigos à intimidade com o Pai.

A partilha fraterna do que temos, para ajudar os que têm menos, entre nós tem já a longa tradição da “Renúncia Quaresmal”. Este ano pensaremos sobretudo naqueles irmãos das nossas comunidades que foram mais atingidos pela atual crise. O resultado desta partilha engrossará o nosso Fundo Diocesano “Igreja Solidária”, mas encontraremos formas de ligar mais ao concreto, garantindo que cada comunidade possa destinar aquilo que recolhe aos necessitados da própria comunidade, sem esquecer que a verdadeira dimensão desta família de irmãos é a Diocese, e que uma organização diocesana, garantida pela Caritas, é conveniente e necessária.

Espero que este programa interesse toda a Diocese, quer mobilizando para as atividades diocesanas, quer encontrando formas de fazer ecoar em cada comunidade o que se passa no coração da Diocese.

Não esqueçamos que só haverá Nova Evangelização se o nosso anúncio tiver um novo ardor, e se ousar novos métodos e novas expressões. É preciso ir além das nossas rotinas pastorais e voltar a encarnar a ousadia da Igreja apostólica. Esta Quaresma tem mesmo de ser, para todos nós, ocasião de conversão. Cristo, que continua a querer salvar todos os homens, precisa da nossa ousadia, porque O queremos seguir e partilhar com Ele a missão, nesta sociedade que parece ter-se afastado tanto d’Ele e do Seu Evangelho.

Lisboa, 7 de fevereiro de 2012, Festa das Cinco Chagas do Senhor

D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa

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