Homilia do cardeal-patriarca na solenidade da Imaculada Conceição

“A Mulher Imaculada” 

1. Maria é a Mulher Imaculada. Por isso todas as gerações a proclamam “bendita entre todas as mulheres”. O facto de ser a Mulher Imaculada desde o primeiro momento da sua existência é, sem dúvida, um privilégio pessoal que lhe foi concedido por Deus através daquele Filho de quem seria a Mãe. É um dom ligado à sua maternidade. Ao receber no seu seio maternal o próprio Filho de Deus, ia estabelecer com Ele e por Ele com a Santíssima Trindade, uma intimidade amorosa que exigia que o seu coração fosse tão imaculado como o do próprio Deus. Ter um Coração Imaculado é uma exigência da intimidade com Deus a que Ele a chamou e que na sua maternidade misteriosa adquire os contornos da relação Mãe-Filho.

Antes desse momento ter acontecido convinha que ela, a Mulher-Mãe, já tivesse a experiência dessa intimidade total com Deus, Trindade Santíssima. É por isso que Deus a quis Imaculada desde o primeiro momento da sua existência. São Bernardo, nos seus sermões em honra da Virgem Maria, referindo-se à Anunciação, diz que o Anjo Gabriel ficou espantado de encontrar aquela a quem trazia a mensagem do amor de Deus, profundamente mergulhada nesse amor. Ela é a primeira criatura que mergulhou totalmente na comunhão do amor trinitário, porque foi criada com Coração Imaculado. E essa experiência mística prepara-a para receber no seu seio o Verbo encarnado, estabelecendo com Ele uma relação com a Pessoa divina, o que eleva à plenitude a própria relação maternal. É por isso que a sua maternidade se vai exprimir numa relação maternal com todos aqueles que, redimidos por Jesus Cristo, recebem a cura do coração e são chamados a participar no amor divino.

A Carta aos Efésios exprime-o claramente: “Foi assim que n’Ele, nos escolheu, antes da criação do mundo, a fim de sermos, na caridade, santos e irrepreensíveis diante d’Ele. Destinou-nos de antemão a sermos seus filhos adotivos” (Efs. 1,3-4).

A transformação do nosso coração pecador em coração imaculado, capaz de ver e amar a Deus, é o mistério da nossa redenção, um “coração novo”, chamaram-lhe os Profetas. É o nosso itinerário da graça e de chamamento à santidade, que acontece com a força de Jesus Cristo. Mas a sua Mãe, a Mulher de Coração Imaculado, está necessariamente envolvida neste caminhar da graça e está envolvida como Mãe, pois essa é a verdadeira dimensão da sua maternidade. Ela conduz-nos, com amor de Mãe, nesse caminho misterioso de mergulharmos no amor de Deus, por Jesus Cristo. Em toda a verdadeira experiência de amor de Deus, o cristão encontra Maria, a Mãe de Coração Imaculado.

 

2. Este mistério de Maria acontece numa humanidade ferida pelo pecado. A primeira mulher, Eva, também fora criada com um coração imaculado. Deus criou-os à Sua imagem, portanto com uma capacidade de mergulhar no mistério do amor de Deus: “Deus criou o homem à Sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou, e criou-os homem e mulher” (Gen. 1,27). Mas escutaram outras vozes que não a de Deus e isso afastou-os da intimidade com Deus; o seu coração deixou de ser imaculado. Isso pode acontecer ao cristão quando, na sua caminhada para a intimidade com Deus, escuta outras vozes e esquece a voz de Deus. É por isso que a escuta da Palavra de Deus é decisiva na caminhada do cristão. Não a escutar é afastar-se do caminho que conduz à intimidade de Deus. Só Cristo e Sua Mãe, a Mulher do Coração Imaculado, nos podem reconduzir à escuta da voz do Senhor.

Deus criou-os à Sua imagem, homem e mulher os criou. A Encarnação do Verbo no seio de Maria é uma nova criação. Homem e mulher voltam a ser, perfeita e definitivamente, imagem de Deus. Depois de Adão, o primeiro homem com um coração imaculado, capaz da comunhão trinitária, é Jesus Cristo. Depois de Eva, a primeira Mulher com coração imaculado, capaz de ver a Deus, é Maria. Os Padres da Igreja chamaram-lhe a “Nova Eva”. E se em Adão e Eva sobressaía a conjugalidade, embora a maternidade já esteja na origem do próprio nome da mulher, entre Cristo e Maria ressalta a maternidade, a relação Mãe-Filho, embora sem anular a esponsalidade. A sua relação maternal com o Filho situa-a, na comunhão trinitária, como esposa de Deus Pai, e a sua própria relação maternal tem a dimensão esponsal, porque Cristo ama a Igreja como Esposo e Maria é o primeiro membro da Igreja. Em Maria a maternidade e a esponsalidade ganham nova dimensão, sobretudo na compreensão da mulher cristã. Se mergulhar na intimidade de Deus com um coração novo, um coração purificado, é sempre esposa e Mãe, seja qual for a concretização da sua maternidade, pois é chamada, em Cristo, a participar da maternidade de Maria, sentindo-se Mãe de todos aqueles que Deus chama a serem seus filhos. Esta nova síntese entre maternidade e esponsalidade é cantada na Liturgia. Num Hino de Laudes canta-se:

“Sois a mais bela das criaturas

De Deus esposa, Mãe de Jesus.

Sois Mãe dos homens por vós gerados

Do mesmo sangue dado na Cruz”

 

3. A Mulher de Coração Imaculado é humilde e obediente, porque ouve sempre a Palavra de Deus e dá-lhe prioridade sobre todas as outras “vozes”, corrigindo a infidelidade de Eva. Essa fidelidade à escuta da Palavra de Deus é uma das manifestações do seu Coração Imaculado. A sua resposta ao Anjo Gabriel, “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra”, é a manifestação, naquela circunstância concreta, da atitude habitual e permanente da Mulher Imaculada, escutar sempre a Palavra de Deus e segui-la com amor.

Na nossa caminhada de fé, a fidelidade concretiza-se aí: escutar sempre a Palavra do Senhor e segui-la, na obediência da fé, dando-lhe primazia sobre todas as outras vozes. A humildade de Maria inicia-nos no caminho da “obediência da fé”.

Sé Patriarcal, 8 de dezembro de 2011

D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa

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