Homilia do bispo do Porto na Missa da Ceia do Senhor

Até ao fim, à caridade completa

 

Irmãos caríssimos,

Estamos na Ceia do Senhor, estamos no coração da Igreja e do mundo; do coração que o mundo deve reconhecer e agradecer, pois que o ganhou em Cristo. Podemos dizê-lo, porque sabemos que aqui o Senhor Jesus significou e partilhou tudo quanto o Pai lhe deu para nos oferecer a nós; como aqui retribuiremos em infinda ação de graças tudo quanto Jesus tomou de nós para oferecer ao Pai, no divino movimento do Espírito.

Disse “porque sabemos”, mas talvez me apressasse um tanto. Melhor será dizer que vamos sabendo, como quem saboreia um gosto sempre novo e insuspeitado; ainda que por vezes “amargue nas entranhas”, por mais nos assimilar a nós do que alguma vez o possamos assimilar totalmente a ele, como àquele livro derradeiro (cf. Ap 10, 9-10).

Assinala-se a paixão de Jesus, como corpo entregue e sangue derramado. Alimenta-se a vida e a prolongada meditação da Igreja, com substância a pouco e pouco assimilada. Podemos até dizer que a vida eclesial – no conjunto e em cada comunidade, em cada crente – se qualifica pela assimilação eucarística que for fazendo. Para inteiramente correspondermos à misericórdia divina e à oferta de Cristo por nós e para nós, cumprindo a exortação paulina, que resume tudo. “Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos bem amados, e procedei com amor, como também Cristo nos amou e se entregou a Deus [Pai] por nós como oferta e sacrifício de agradável odor” (Ef 5, 1-29). 

Esta Ceia de Jesus é singular, porque “foi de vez” e para o tempo todo. Por isso dizia tão bem Teresa de Calcutá aos sacerdotes: “Celebra esta Missa como se fosse a primeira, celebra esta Missa como se fosse a última, celebra esta Missa como se fosse a única”.

Da parte de Deus, tudo está oferecido no sacramento eucarístico. Os dias ou anos que ainda tivermos, hão de tomar-se, sempre e só, como oportunidade para colher o seu fruto, em adoração e compromisso, para uma vida que seja eucarística também, grata e oferecida. Para glória do Pai e salvação do mundo, para glória do Pai na salvação do mundo. Lembrando ativamente as palavras de Jesus: “Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo” (Jo 6, 51).

 

Ouvíamos o magnífico pórtico com que São João abriu a narração da Ceia e os discursos de despedida de Jesus. Fixemo-nos neste trecho: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. Fixemo-nos, mais precisamente, na última parte: “Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”.    

Jesus provém do coração de Deus – “desceu do Céu” -, como oferta ao mundo; filho de Maria e adotado por José, Jesus está também no coração do mundo, como devolução ao Pai. São Lucas indica-o claramente e desde os primeiros dias: “Quando se cumpriu o tempo da sua purificação, segundo a Lei de Moisés, [Maria e José] levaram-no a Jerusalém para o apresentarem ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor: ‘Todo o primogénito varão será consagrado ao Senhor’” (Lc 2, 22-23).

Doze anos depois, estará de novo no templo, respondendo a seus pais: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?” (Lc 2, 49). O evangelista comenta que eles não perceberam então todo o alcance das suas palavras. Com o tempo, Maria percebeu-as inteiramente e, aos pés da Cruz, ofereceu-se também com o seu Filho crucificado. Aí lhe ouviria as últimas palavras de retribuição: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). Ao que o mesmo evangelista acrescenta: “Dito isto, expirou”. Expirou, derramando sobre nós o mesmo Espírito em que se entrega ao Pai, para participarmos da sua oferta, vivendo da sua vida.      

Amou-nos até ao fim… Tal foi o fim da sua existência terrena, enquanto finalidade atingida. Daí que São João a remate deste modo: “Quando tomou o vinagre – o vinagre com que os soldados “corresponderam” à sua sede -, Jesus disse: ‘Tudo está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19, 30).

Até ao fim… Totalidade da entrega, ao Pai e a todos, em absoluta eucaristia. Nada sobra ou destoa desta entrega de si. Correlativamente, nada pode destoar em nós, se nos quisermos “eucarísticos”, pelo Espírito que connosco compartilhou.

Os autores do Novo Testamento não têm dúvidas quanto a este ponto. Como João, também nos discursos de despedida: “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos amigos” (Jo 15, 12-13). Ou na sua primeira carta: “Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos” (1 Jo 3, 16).

Ainda antes de ser uma obrigação “moral”, a correspondência de cada um de nós aos sentimentos de Cristo – de que somos beneficiários sem mérito próprio e havemos de ser transmissores sem distração nem demora -, é a verdade nova das nossas vidas resgatadas. Como exclamava São Paulo, verificando-a em si mesmo: “Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2, 19-20). E, mais ativamente ainda, em eucaristia sempre: “… completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja” (Cl 1, 24). (Só assim posso compreender o que ouvi um dia a um sacerdote, que ao proferir as palavras da consagração: “Isto é o meu corpo, entregue por vós”, sentia que também ele se entregava àqueles e por aqueles que eclesialmente servia.)

 

Caríssimos irmãos, esta verdade certa da Eucaristia plena é de grande exigência para todos. Não a podemos comungar sacramentalmente sem a praticar consequentemente na vida. De modo crescente, decerto, pois o “até ao fim” que Jesus cumpriu, só a sua graça vai realizando em cada um nós. Com a misericórdia divina e a persistência de todos. Não haja dúvida aqui: para crescermos como comunidades eucarísticas, temos de ser comunidades penitenciais, isto é, de conversão persistente. Amor pede amor e, sendo o mais belo, é também o que há de mais exigente na vida.

É doloroso para os próprios e para a Igreja inteira que nem sempre possamos receber a comunhão sacramental, quando a nossa vida a contraria em pontos graves. Ninguém julga ninguém e a misericórdia divina nunca está em causa. Mas também nisto Deus nos leva a sério, e não “fecha os olhos”, ainda que nunca feche o coração.

Rezemos sempre por todos e não abandonemos a assembleia litúrgica, recebendo tudo e apenas o que vida nos permita atualmente receber do que Deus infinitamente nos oferece, não desistindo de chegarmos depois “até ao fim”. E levando muito a sério a advertência de São Paulo, como a sério nos devemos levar a nós, na plena verdade das vidas a caminho: “Assim, todo aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Portanto, examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba deste vinho; pois aquele que come e bebe, sem distinguir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação” (1 Cor 11, 27-29).

Digamo-lo mais uma vez, a Ceia do Senhor é a mesa plena da sua vida oferecida. E perdoai-me, irmãos e irmãs, se não sei exprimir melhor tudo quanto a Ceia de Jesus oferece e requer. Também aqui teremos de caminhar muito e “até ao fim”, à caridade completa e eterna. Vale-nos, entretanto, o gesto que se segue, simplificando-se o mais nas palavras de Jesus, como ordem e critério: “Se Eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também”.

Sé do Porto, 21 de abril de 2011

D. Manuel Clemente, Bispo do Porto

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