2ª conferência quaresmal do bispo de Viseu

A Igreja e o Reino de Deus (Jo 10, 1-18)

 

(“O ícone missionário por excelência é a figura do Bom Pastor, transparência do amor de Deus, que não abandona ninguém, mas vai à procura de todos e de cada um com paixão” – Carta Pastoral: “Para um Rosto Missionário da Igreja em Portugal”).

“É este «estilo do Senhor Jesus», Bom Pastor (…), que deve impregnar e moldar o rosto da Igreja, da paróquia e de cada cristão”, sabendo-se que a paróquia é «a própria Igreja que vive no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas e que a sua vocação «é a de ser a casa de família, fraterna e acolhedora» – (cf Para um Rosto, 6-7).

 

1. A Trindade é a origem, o modelo e a pátria da Igreja

A partir do Fundador da Igreja (Jesus Cristo), dos momentos e das circunstâncias da fundação (chamamento e formação dos discípulos, última Ceia – Eucaristia, Tríduo Pascal, Mandato e Envio, Pentecostes) e tendo em conta os seus elementos constitutivos (Jesus Cristo, Palavra, Eucaristia, Amor Fraterno), podemos concluir que a Igreja é o sacramento (sinal) e a expressão da comunhão trinitária, trazida por Jesus, para unir os homens entre si e com a Trindade. A Igreja, como diz a Lumen Gentium, “é como que o sacramento, ou sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano” (LG 1). As alusões à relação com o Pai, à intervenção do Filho e à presença e acção do Espírito Santo são constantes, sobretudo no 1º capítulo. Este é intitulado, com muita razão e de forma elucidativa “O Mistério da Igreja”. Toda esta “habitação” da Trindade – a Igreja é “habitação de Deus no Espírito (Ef 2, 19-22)” (LG 6) – é para que “a Igreja e deste modo os fiéis tivessem acesso ao Pai, por Cristo, num só Espírito” (LG 4). Este mesmo número termina desta forma: “Assim a Igreja toda aparece como «um povo unido pela unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo»”.

A Igreja é, com tal propriedade, expressão da comunhão trinitária, sabendo que a sua pátria é o céu e sentindo-se, na terra, como “peregrina e exilada, buscando e saboreando as coisas do alto, onde a vida da Igreja está escondida com Cristo em Deus até que apareça com seu esposo (Cristo) na glória” (LG 6). Isto quer dizer que a Igreja é expressão da comunhão trinitária, vive a esperança do encontro e peregrina para a Casa do Pai.

A missão e a prática pastoral da Igreja têm, como fonte e alimento, a Trindade (sobretudo, a Palavra de Deus e os Sacramentos) e têm como finalidade a santificação (aproximando-nos de Deus) e a unidade de todos, conduzindo-nos à Trindade e realizando a comunhão. De tal modo é assim que Jesus reza no Seu Testamento: «Para que todos sejam um, assim como Tu, Pai, estás em mim e eu em Ti, para que também eles estejam em nós e o mundo creia que Tu me enviaste» (Jo 17, 21).

Na verdade, o fim último da Igreja é realizar a comunhão na Trindade, como afirma a Constituição Dogmática sobre a Igreja, quando diz: «O carácter de universalidade que distingue o Povo de Deus é dom do Senhor; por Ele a Igreja católica tende eficaz e constantemente à recapitulação total da humanidade com todos os seus bens sob a cabeça, Cristo, na unidade do Espírito Santo» (LG 13). A comunhão é tão importante e critério indispensável que define quem está ou não dentro, como diz o mesmo Documento, citando Santo Agostinho: «Não se salva, porém, embora incorporado à Igreja, quem não persevera na caridade; permanecendo na Igreja pelo «corpo», não está nela com o coração» (LG 14). Como conclusão e síntese de tudo isto, termina desta forma o capítulo II “O Povo de Deus”: «É assim que a Igreja simultaneamente ora e trabalha para que toda a humanidade se transforme em Povo de Deus, corpo do Senhor e templo do Espírito Santo e em Cristo, cabeça de todos, se dê ao Pai e Criador de todas as coisas toda a honra e toda a glória» (LG 17).

 

2. A Igreja é a expressão da comunhão trinitária

O mistério da presença trinitária é a verdade mais bela e mais jubilosa que a Igreja pode dar ao mundo” (Para uma Igreja Comunhão, pág. 21). “É o amor fontal de Deus Pai, expresso na missão do Filho e do Espírito Santo, que dá à Igreja e a cada um dos baptizados-confirmados a graça da sua identidade missionária” (Carta Pastoral – Para um rosto missionário da Igreja em Portugal, 5).

Esta comunhão é tão profunda que começa, desta forma, o capítulo V, intitulado “A Vocação de todos à Santidade na Igreja”: «A nossa fé crê que a Igreja, cujo mistério o sagrado Concílio expõe, é indefectivelmente santa. Com efeito, Cristo, Filho de Deus, que é com o Pai e o Espírito «o único Santo», amou a Igreja como esposa, entregou-Se por ela, para a santificar e uniu-a a Si como Seu corpo, cumulando-a com o dom do Espírito Santo, para glória de Deus» (LG 39). O segredo da santidade na comunhão, exprime-o logo a seguir, quando diz: «A todos enviou o Espírito Santo, que os move interiormente a amarem a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito e com todas as forças e a amarem-se uns aos outros como Cristo os amou» (LG 40).

Para compreender esta realidade, temos que procurar a compreensão do que está antes do nascimento e da fundação da Igreja e procurar a razão fundamental que a originou – o amor –, ouvindo S. João dizer: «Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo que lhe deu o Seu Filho único, para que todo o que n’Ele crer não pereça mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo 3, 16-17).

Imaginamos Deus que sente o mundo como uma “parte” de Si próprio e que, com mágoa, o vê a sofrer e a desviar-se de Quem o ama e de Quem lhe pode dar o que precisa. Então, não só envia um dos três – o Filho – como os três Se empenham em dar ao mundo as condições todas de salvação: Igreja que é o mistério de Deus, carregada dos dons divinos e acompanhada com a Sua própria presença: do Filho e do Espírito Santo. De facto, a Igreja não só está grávida do Filho, mas recebe o Espírito Santo com os Seus dons.

 

3. Comunhão: “estar, andar e ir”com Deus “para” os irmãos

«O conceito de “comunhão” associado à Igreja é uma verdadeira “chave de leitura” da vida eclesial» (Para uma Igreja Comunhão, pág. 19). Identifica a relação e aponta sempre à missão. Estar com Jesus e, por Ele, com Deus Trinitário, é estar sempre “para” os outros e disponível para se consagrar aos outros.

“Senhor, é bom ficarmos aqui” (Mt 17, 4) – Evangelho do Domingo. Comunhão não é um estar e ficar – gozoso e descansado – nas delícias da satisfação pessoal, fechando-nos no pequeno grupo onde nos sentimos bem – Movimentos… “Preciso de ir às ovelhas perdidas da Casa de Israel. Foi para isso que Eu vim”, diz Jesus aos discípulos que O querem para eles. Viver a comunhão é estar sempre na atitude de ir para uma relação cada vez mais exigente e mais plena, partilhando, nessa relação, o amor e a vida de todos os outros. Por isso, a Igreja é, por natureza, missionária (cf Carta Pastoral dos Bispos “Para um rosto missionário da Igreja”). Toda a acção da Igreja é missionária porque é evangelização e anúncio da Boa Nova – esta é a missão que recebeu de Jesus.

Nesta acção evangelizadora, fundamento da “missão global” e de acordo com o proémio da Gaudium et Spes, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração” (GS 1). Este é o núcleo central da mensagem do Reino de Deus.

 

4. O Reino de Deus é a Missão da Igreja

“A acção eclesial deve ser sinal e fermento do Reino no mundo” (Para uma Igreja Comunhão, pág. 28).

O Reino de Deus está na origem da Igreja como a sua finalidade. Foi o Reino que Jesus iniciou a pregar e foi o Reino que Jesus mandou anunciar, mesmo nas situações em que os Seus discípulos não sejam recebidos. No envio dos 72 discípulos (acção normal da Igreja – sempre enviada), Jesus diz a dado passo: «Curai os enfermos que nela houver e dizei-lhes: O Reino de Deus está próximo. Mas se entrardes nalguma cidade e não vos receberem, saindo pelas suas praças, dizei: Até o pó que se nos pegou da vossa cidade, sacudimos contra vós; sabei, contudo, que o Reino de Deus está próximo» (Lc 10, 9-11). O Reino de Deus é a missão da Igreja e “a causa missionária deve ser, para cada cristão e para toda a Igreja, a primeira de todas as causas” (João Paulo II in Redemptoris Missio, 86). Ainda, “ a proclamação da Boa Nova a todos os povos e em todas as culturas continua a ser o melhor serviço que a Igreja pode prestar às pessoas” (Para um rosto, 9). Porém, o Reino de Deus está, também, na origem da Igreja como tensão, referência permanente e orientação para o mundo futuro, dado que o Reino somente se atingirá na plenitude.

A tensão que existe na Igreja, enviada para proclamar e anunciar o Reino de Deus, faz-nos sentir que a Igreja não existe por si mesma nem para si mesma. Não se contempla nem se anuncia a si mesma, mas contempla e anuncia Jesus Cristo, como tem afirmado o Papa Bento XVI, em várias das suas intervenções. A Igreja não é, assim, uma instituição para contemplação e à qual somos chamados para “lá” estarmos, como num “porto seguro”. A Igreja é uma missão, sempre chamada a ir a outro lugar; é uma barca que navega em mares, por vezes, alterados, sempre confiante de que o Senhor vai nela e com ela, para que cumpra a sua missão. A Igreja, mais que Assembleia reunida, é Assembleia que se reúne, em nome de Jesus Cristo, para celebrar, com Ele, a fé e a vida e ser enviada – não é o Cenáculo, mas a resposta do Pentecostes. É o Pentecostes em acção. A Igreja aponta sempre para o além, para o futuro que procuramos e que só se atinge na plenitude da vida, em Deus.

A resposta, depois da consagração, à indicação do Mistério da Fé, ali celebrado e ali presente, contém o compromisso pela missão do Reino: “Anunciamos, Senhor, a Vossa morte; proclamamos a Vossa Ressurreição. Vinde, Senhor Jesus”! “Qual a missão da Igreja? Podemos, à partida, afirmar que a Igreja deve tornar Jesus Ressuscitado contemporâneo do ser humano de cada tempo e lugar” (Para uma Igreja Comunhão, pág. 28). Igualmente, o “ide em paz e o Senhor vos acompanhe”, no final da Eucaristia, é um envio para o anúncio do Reino.

 

5. Na Igreja, Fé é relação, Esperança é cor e Amor é distintivo

Na Igreja de Jesus Cristo somos chamados a viver 3 atitudes que nos identificam no meio de todos os outros e nos congregam para nos motivarem à missão do discípulo missionário. Essas atitudes são as provenientes das 3 virtudes chamadas “teologais”. Teologais porque elas nos aproximam de Deus e nos tornam membros da Sua família para que sejamos facilmente identificados: na vida e no testemunho. São elas: Fé, Esperança e Caridade.

A Fé é, sobretudo, a relação que provoca e gera comunhão: com Deus e entre todos. A Fé que se acolhe, que se vive, que se conta e que se testemunha na vida.

A Esperança é, sobretudo, a cor que dá sentido, alegria, serenidade e confiança à nossa vida, levando-nos a olhar o futuro, na certeza de que, também “lá” está Deus. Ele caminha connosco no presente e espera-nos no futuro. O futuro nunca nos encontra desprevenidos se o olhamos e esperamos com Deus.

A Caridade, o Amor é o distintivo, uma vez que, como nos diz Jesus: «nisto todos conhecerão que sois Meus discípulos, se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35). O Amor é a virtude distintiva e que dá a “marca” aos discípulos de Jesus – marca da comunhão, da alegria e da simpatia – na experiência da Igreja dos primeiros cristãos. Esta “marca” levava a que muitos se admirassem pelo estilo de vida e aderissem ao número dos discípulos de Jesus (cf Act 2, 42-47).

Viseu, 24 de Março de 2011

D. Ilídio Leandro, bispo de Viseu

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