Apresentação do livro «Jesus de Nazaré» pelo bispo do Porto

O recente livro do Papa na simples leitura dum bispo

Ao ler Jesus de Nazaré. Da Entrada em Jerusalém até à Ressurreição, de Joseph Ratzinger/Bento XVI (Cascais: Principia, 2011, em tradução fluente que estimula a leitura), várias vezes me lembrei dum célebre trecho das Escrituras cristãs: “… no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantende limpa a consciência…” (1 Pe 3, 15-16). Os destinatários são cristãos que já sofriam desconfianças e contradições. A recomendação é para terem fé serena e partilhável, precisamente em tais circunstâncias.

 

De Roma nos chega agora este livro do Papa, meditado e escrito em tempos de novas ou reeditadas desconfianças e contradições. E a resposta é dada em duas centenas e meia de páginas, com as mesmas qualificações requeridas: dando razões da esperança, com mansidão, respeito e limpidez de consciência. Serenamente, pois, e abertamente. A apologia possível e oportuna, ao “modo suave de Deus”, como indica a certo passo (cf. p. 224).

 

Não tem propriamente “tema”, por se tratar antes de mais duma figura. Figura não só tematizável, mas realíssima de facto. A historiografia, enquanto recuperação de notícias e enquadramentos originais, atesta-lhe a existência, mas é ultrapassada pela convivência. Sabe-se “historicamente” de Jesus da Nazaré mais do que doutras figuras anteriores ou coevas, indiscutíveis também. Mas, como de qualquer pessoa, sabe-se dele pela convivência que teve e o rasto que deixou, porque a definição de cada um é recíproca em relação àqueles com quem directa ou indirectamente convive. Daí que não haja memória sem testemunhos, nem história sem interpretação, compreensão, por parte de quem vê, ouve ou conta.

 

Creio coincidir neste ponto com o que o Papa escreve, logo ao princípio: “Tal exegese [bíblica científica] deve reconhecer que uma hermenêutica da fé, desenvolvida de forma justa, é conforme ao texto e pode unir-se a uma hermenêutica histórica ciente dos próprios limites para formar um todo metodológico” (p. 10).

 

Digamos ainda que, se a personalidade em causa é menos consistente, as interpretações imediatas ou sucessivas podem recriá-la e até contrafazê-la, ao ponto de a tornarem irrecuperável. Quando acontece o contrário, ela impõe-se de tal modo que mesmo as interpretações distintas acabam por ser “sinfónicas”. Concluamos que assim sucede em relação a Jesus de Nazaré, como se acentua a propósito dos discípulos de Emaús: “Não foram as palavras da Escritura que suscitaram o relato dos factos, mas sim os factos [a Páscoa de Cristo], que num primeiro tempo eram incompreensíveis, que levaram a uma nova compreensão da Escritura” (p. 168).

 

Dos vários autores referidos e comentados na bibliografia, sobressai John P. Meier, exegeta americano. Dele escreve o Papa: “Esta obra, em vários volumes, […] constitui, sob muitos aspectos, um modelo de exegese histórico-crítica no qual estão patentes tanto a importância como os limites desta disciplina” (p. 238). Mas foi o próprio Meier que, depois de ter concentrado em poucas linhas um percurso exegeticamente certificável de Jesus, acrescentou: “É contra o pano de fundo desse escasso referencial cronológico que procuraremos agora entender o que Jesus de Nazaré disse e fez durante esses dois breves anos [de ministério público] que mudaram a face do mundo…” (Um judeu marginal. Repensando o Jesus histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1993, vol. 1, p. 402).

 

É patente o crescimento, do historicamente verificável, enquanto disciplina científica, à repercussão “mundial” que atingiu, enquanto convivência começada, transmitida e alargada em número e consequência. E poderemos acrescentar que a “história” de Jesus incide sobre o que ele disse e fez e as repercussões imediatas e mediatas que tal obteve nos seus discípulos, dos primeiros aos actuais.

 

Admitamos também que, da historiografia “positivista” à século XIX, que pretendia recuperar o passado tal e qual, através da documentação conseguida e independentemente da subjectividade de quem a lesse e seleccionasse, evoluímos entretanto para uma historiografia “personalista”, que reconhece cada um através da relação que manteve com os demais e das consequências mentais e existenciais que neles originou e continua a originar. Não estará longe disto a seguinte alusão do Papa aos contornos escatológicos de Jesus: “O verdadeiro ‘acontecimento’ é a pessoa em quem, não obstante a passagem do tempo, permanece realmente o presente. Nessa pessoa está agora presente o futuro. Em última análise, o futuro não nos colocará numa situação diversa daquela que já se realizou no encontro com Jesus” (p. 51).

 

Personalidade consistente – e por isso “verdadeira” -, a de Jesus, sumamente impressiva na consciência dos seus discípulos e bastante para lhes legitimar o testemunho, de há dois milénios para cá. Tanto que Bento XVI se sente levado a perguntar-nos: “Porventura não irradia de Jesus um raio de luz que cresce ao longo dos séculos, um raio que não podia provir de nenhum simples ser humano, um raio mediante o qual entre verdadeiramente no mundo o esplendor da luz de Deus? Teria o anúncio [pascal] dos apóstolos podido encontrar fé e edificar uma comunidade universal se não operasse neles a força da verdade?” (p. 224).

 

Que isto seja assim, atesta-o certamente o interesse que o livro do Papa desperta, dentro e fora do círculo confessional. E, mesmo sendo o tom muito sereno e fluente, dentro das balizas culturais geralmente aceites, consente aqui e ali a manifestação duma alma crente e “mística”, quando a descrição dalgum passo se abre à directa compaixão. Será porventura este o mais revelador, em torno de Jesus em Getsémani: “Ali, Jesus experimentou a solidão extrema, toda a tribulação do ser homem. Ali, o abismo do pecado e de todo o mal penetrou até ao fundo da sua alma. Ali foi assaltado pela turvação da morte iminente. Ali O beijou o traidor. Ali todos os discípulos O abandonaram. Ali Ele lutou também, por mim” (p. 126).

 

Na última frase, o exegeta e o teólogo dão lugar ao místico, porque a relação se torna directa e agradecida com a personagem estudada. Da inteligência, acedemos à “alma” de Bento XVI. E a esperança aqui já não precisa de “razões”, embora esteja pronta a dá-las, “com mansidão e respeito”.

 

É ainda desta ordem – e muito coerente com o fio condutor da verificação pela convivência – o antepenúltimo parágrafo do texto papal: “E porque não pedir-Lhe que nos conceda também hoje testemunhas novas da sua presença, nas quais Ele mesmo se aproxime de nós?” (p. 236).

 

Bastará assim, como convite à leitura. O livro – cuja excelente edição temos de agradecer também à Princípia Editora – trata de muitos outros pontos, da maior relevância. Fui particularmente sensível à história viva que Jesus de Nazaré vai fazendo com Bento XVI e os seus leitores.

Universidade Católica, Porto, 11 de Março de 2011

Manuel Clemente

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