Natal de 2010, entre dificuldades e esperanças

Homilia do Bispo do Porto na Missa de Natal

Amados irmãos e irmãs, presentes nesta catedral ou connosco unidos através da televisão (RTP):

Vivemos o Natal de 2010 entre dificuldades e esperanças, como aliás decorre a existência humana, na generalidade do tempo e das épocas. Hoje sentimos particularmente as dificuldades, pois a nível local, nacional e internacional temos mais consciência delas, por nos afectarem directa ou indirectamente a todos.

Mas vivemo-lo em esperança, dinamismo interior que nos leva a admitir mudanças para melhor, sobretudo quanto elas se assinalam na actuação concreta de muita gente que não desiste do futuro, próprio e alheio.

Crentes que somos – e mesmo muitos que, não o sendo, ainda olham ou começam a olhar para o Presépio de Belém –, estaremos particularmente propensos a captar e aprofundar a sua mensagem eterna, tão paradoxal em relação a outras e por isso mesmo disponível, quando estas enfraquecem ou falham.

No tempo em que Jesus nasceu estabelecia-se na sua terra e em muitas outras ao redor do Mediterrâneo um dos maiores impérios que a história conheceu: o Império Romano de Octávio César Augusto. Ainda hoje guardamos dele a língua e o Direito, bem como muitas outras manifestações de civilização e cultura.

Crescendo e vivendo nele, o Menino que agora nasce respeitá-lo-á depois, na respectiva ordem, deixando-nos uma palavra excepcional a tal propósito: “Dai a César o que é de César…” (Mt 22, 21). Assim aconteceu até ao fim da sua vida terrena, mesmo quando injustamente condenado à morte pelo representante local do poder de Roma, como nunca esquecemos de acentuar no Credo, lembrando no destino de Cristo todos os injustiçados por maus exercícios do poder, seja onde for: “Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos”.

Em Jerusalém, sob a tutela de Roma, reinava Herodes o Grande, que ganhou tal cognome pelas obras materiais que deixou, avultando o magnífico templo ainda a completar-se. Aconteceu até que, um certo dia, Jesus teve de esfriar o entusiasmo dos que se maravilhavam com a beleza das suas pedras aparelhadas, lembrando que a perenidade das construções humanas se garante apenas pela verdade e a consistência interior dos respectivos obreiros… Como sabemos, de tal rei e dos seus medos enlouquecidos, teve José de livrar logo de seguida o Menino e sua Mãe, fugindo para o Egipto.

É em absoluto contraste com tal quadro que nasce Jesus, como depois prosseguirá a sua vida. Hoje contemplamo-lo num presépio, com tal incidência de luz que quase nos esquecemos de que se trata duma manjedoura, “porque não havia lugar na hospedaria”. Pobre era o lugar, pobres eram Maria e José; paupérrimos eram os pastores que acorreram, gente particularmente desprezada na altura; pobres eram até os magos, pois tinham deixado longes terras, com a única certeza da esperança que os transportava.

Nem palácio, nem corte, nem guardas… Nada de espantoso ou imponente, porque mesmo aos Anjos só os ouviram os pastores, que mais nada poderiam ouvir. De Belém, ninguém consta que ouvisse ou acorresse. As figuras, que se acrescentaram nos presépios que depois fizemos e havemos de fazer, representam-nos a nós, que, século após século, aí nos juntamos. Mas só na simplicidade ouvimos os Anjos (= mensageiros) e só procurando O encontraremos por fim.

Deste mesmo contraste passamos à surpresa. – Como é possível que este mesmo Nascimento nos atraia tanto, empalidecendo e ofuscando aquelas realidades tamanhas que então espantavam toda a gente?! Na verdade, o Imperador de Roma julgava inaugurar uma nova idade do mundo e não tardou a ser adorado como divino. E os primeiros discípulos de Cristo – como tantos outros depois – foram perseguidos por se recusarem a endeusar qualquer poder político que fosse, ainda que quisessem ser os primeiros a respeitá-lo na sua justa ordem e a cumprir os deveres da comum cidadania.

Surpresa então e surpresa sempre, nutrimos nós por tal contraste. Num mundo cheio de luzes de variadas grandezas, juntamo-nos em torno daquele pleníssimo Menino. Com a mesma surpresa e coerência com que nos havemos de juntar, três décadas volvidas, em torno da sua Cruz, quando repetirmos com o centurião romano: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” (Mc 15, 39).

A grande lição do Natal, caríssimos irmãos e irmãs, será precisamente essa, sobre o próprio Deus. Ateísmos de ontem e de hoje radicam em geral na ideia errada que se faz de Deus e que inclusivamente nós, os crentes, tantas vezes mantemos e manifestamos sobre Ele. No imenso escuro-claro do Presépio e da Cruz, Deus contrasta em absoluto com as costumadas projecções que fazemos dos nossos sentimentos básicos de segurança, poder e glória. Também não foi por acaso que os primeiros perseguidores dos cristãos os acusavam de “ateísmo”… Na verdade, os discípulos de Cristo negavam-se a adorar os deuses de qualquer Império e assim continuam, reservando a adoração para a verdade de um Deus que se verbaliza e dá a conhecer onde é inevitável que tal aconteça, para ser por nós apercebido: na humanidade de Cristo, estendida à humanidade de todos, com a sua frágil consistência; a única que dá lugar ao verdadeiro amor, que é relacional e gratuito.

Deus dá-se a quem se dá e a própria experiência do dar-se é autêntico conhecimento de Deus. Proclamou-o o Evangelho que escutámos, como que resumindo em frases essenciais toda a lição do Natal e da vida de Jesus, tão dramática e luminosa agora como então: “O Verbo era a luz verdadeira, que, vindo ao mundo, ilumina todo o Homem. Estava no mundo, e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam. Mas àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.  […] A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer” .

Na nossa fragilidade – oposta a qualquer auto-suficiência e soberba – encontramos os outros e salvamo-nos em relação. O próprio Jesus, em quem Deus humanamente se diz, é quando se despoja no “abandono” da Cruz – o último Presépio que teve – que é culminado pela misericórdia do Pai, também e de algum modo “carente” do abandono do Filho, para poder ser “pai”. De facto, àquele versículo que dolorosamente aí lhe brota: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, seguem-se outros de grande confiança: “Vós, que temeis o Senhor, louvai-O! […] Pois Ele não desprezou nem desdenhou a aflição do pobre, nem desviou dele a sua face; mas ouviu-o, quando lhe pediu socorro” (Sl 22, 2.24-25).

Absoluta novidade do Cristianismo – constituindo para a nossa inveterada auto-suficiência motivo de grande conversão – é a de um Deus intrinsecamente interdependente, como se revela na relação entre Jesus e o Pai, na mútua circulação do Espírito. É esta relação divina que agora nos inclui a nós, no Espírito de Cristo, para sermos como Ele “filhos de Deus” e irmãos universais.

 trecho do Evangelho que escutámos prolonga-se noutros trechos bíblicos com a mesma lição, nunca por demais aprendida e hoje tão urgente, para festejarmos o Natal de 2010 no contexto social que nos toca. Melhor dizendo, porventura: para sermos o Natal de Cristo, em nós continuado e proporcionado aos outros. Como na 1ª Carta de João: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor” (1 Jo 4, 7-8).

– Graças a Deus, que tais coisas nos revela e tais sentimentos nos desperta no Natal de Cristo, activo no mundo! E exactamente agora, quando tantas dificuldades acrescem, obviando a feliz realização de muitos. Algumas são as de sempre, devidas à nossa fragilidade essencial, de corpo e de espírito; outras sobrevieram com a actual “crise” económica e social, atingindo pessoas e famílias inteiras. Mas é também nesta altura – e em evangélico contraste – que deparamos com múltiplos sinais de esperança preenchida. Há famílias que se reencontram em gestos de partilha para com os parentes em dificuldade; há vizinhos que o passam a ser deveras, há instituições públicas e particulares que se desdobram em gestos de acolhimento e solidariedade; há empresários e trabalhadores que não desistem de garantir criativamente a produção e o seu escoamento; há responsáveis de todos os níveis da administração que persistem em encontrar soluções para evitar o pior e melhorar o que há… – Temos tanto para fazer, com a  boa vontade de todos e temos muito a recuperar e desenvolver, no que aos sentimentos básicos respeita, para nos levarmos mais a sério como humanidade feliz e solidária!

Natal é Céu nesta terra e no mais concreto das vidas. O contrário de qualquer alienação religiosa, pois em Cristo, a “religião”, isto é, a ligação a Deus, se faz no próximo, em que Ele se une a cada um de nós. Foi também um dos primeiros cristãos que nos deixou as seguintes palavras: “A religião pura e sem mácula diante daquele que é Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo [no sentido materialista e egoísta do termo]” (Tg 1, 27).

Como sabemos, “órfãos e viúvas” eram na altura os mais abandonados de todos. Hoje podemos traduzi-los por muitos emigrantes e desempregados, muitos sós e sem abrigo, muitas grávidas e crianças sem apoio, muitos doentes e acamados sem família disponível e tantas, tantas outras situações de carência variada. – Tanto Natal a fazer, até onde Cristo quer chegar através de nós, para ser Emanuel: “Deus connosco” e com todos, todos mesmo, dentro e fora das nossas casas, aquém e além das nossas fronteiras!  

 Basicamente, no que à vida de cada um diz respeito, em todo o arco existencial da concepção à morte natural, acompanhando cada fase da vida com o apoio que lhe é devido. Compreendendo finalmente que a realização de cada um está sempre ligada à realização de todos, naquela humanidade interdependente que o próprio Deus fez sua no seio da Virgem Maria, para finalmente “habitar entre nós”!

– Feliz Natal a todos, caríssimos irmãos e irmãs. Feliz Natal na santidade de Deus, que é outro nome daquela caridade em que unicamente nos salvamos!           

+ Manuel Clemente, Bispo do Porto
Sé do Porto, 25 de Dezembro de 2010

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