O que no início parecia uma “entrada” amarga foi uma refeição saborosa, em família, sabendo que ali – como diria Pessoa – éramos mais que nós – éramos um povo.
Foi no final dos anos 70 que participei em Munique num encontro sobre Comunicação Social. Recordo ainda um jantar que nos foi oferecido pelo Arcebispo da Diocese, Cardeal Ratzinger. Na ementa, a “entrada” era salmão (mal) fumado e que tive, com relutância, de engolir de olhos fechados como acontece em jantares de cerimónia. Só mais tarde vim a apreciar esse peixe e a vê-lo como toque de requinte e gosto nalgumas refeições.
Não sei se andava por aqui alguma parábola sobre o que é preciso aprender a apreciar. Recordava isso quando por vezes via em Roma o Cardeal Ratzinger atravessar a Praça de S. Pedro em direcção ao seu trabalho – uma Congregação que não era das preferidas da minha geração. Mas sabia que ele tinha feito parte do grupo de teólogos que marcaram o Concílio que, por sua vez, marcou decisivamente a minha vida.
Acompanhei, como repórter, a sua eleição e cumprimentei-o, com outros jornalistas, no dia seguinte à tomada de posse. Tudo isto é razoavelmente ridículo, semelhante a pretensão de me fazer próximo duma pessoa tão importante como o Papa. Mas queria chegar a outro ponto. Acompanhei a viagem de Bento XVI a Portugal (como havia acompanhado a de Angola) passo a passo, hora a hora, minuto a minuto. Posso dizer que não perdi uma única palavra (com acesso antecipado aos textos) e penso que muito poucos gestos me terão escapado na reportagem exaustiva da televisão em que estive envolvido.
E aqui chego para dizer o que todos viram e sabem: a amplitude da sua presença no meio de nós, depois de todos os alarmes de fracasso que havia – fora (e dentro) da Igreja. E como revelou capacidade de viver intensamente cada ritual que cumpria: litúrgico, pastoral, teológico, social, político, familiar. Nas palavras ditas à cultura, aos consagrados, aos agentes sociais, ao mar de luz, povo de mão firmes, que em Fátima sustentava e erguia a Luz como em Vigília Pascal. E do aconchego que ofereceu a milhões de peregrinos que pela televisão o viram longe e perto – sei de ressonâncias chegadas do Portugal global que anda pelo mundo fora. Pela beleza da Praça e do Tejo de Lisboa, numa aliança de céu, terra e rio, festa e silêncio como multidão jubilosa de jovens e anciãos na Avenida dos Aliados no Porto. Como os peregrinos mediáticos, os pobres e doentes repassados de angústias que se sentiram em Igreja reunida com Pedro num exercício profundo de comunhão e confirmação na fé. E, seja lícito referir, na solidez humilde da sua palavra densa, lógica, bela, crente, próxima, teológica, encarnada, clara, luminosa. E afectiva.
O que no início parecia uma “entrada” amarga foi uma refeição saborosa, em família, sabendo que ali – como diria Pessoa – éramos mais que nós – éramos um povo. Nada seria possível sem essa maravilha que é o nosso povo que soube estar em júbilo e silêncio nos momentos certos e compreendeu por inteiro que quem nos visitou foi mesmo o sucessor de Pedro. O resto foi acidental.
António Rego