Joseph Ratzinger/Bento XVI e o ecumenismo – a busca e a afirmação da verdade

Eduardo Borges de Pinho

1.Nestas notas sobre o pensamento ecuménico de Joseph Ratzinger/Bento XVI ressalto, antes de mais, quatro considerações básicas.

Em primeiro lugar, anoto o facto de que os textos do teólogo J. Ratzinger sobre questões ecuménicas não são em número muito elevado e surgem a maior parte das vezes motivados por situações pontuais (frequentemente, são reflexões críticas sobre desenvolvimentos em curso na cena ecuménica). Isso não invalida o grande alcance de algumas dessas reflexões, mas não dispomos de um escrito com uma visão de conjunto sistematizada.

Não obstante isso, importa sublinhar que na vida, na teologia e na intervenção eclesial de J. Ratzinger/Bento XVI o ecumenismo constitui, como uma das consequências essenciais do Vaticano II, uma dimensão imprescindível da vivência e da reflexão teológica católicas. Para ele, não só a teologia não pode ignorar o ecumenismo enquanto indispensável busca de um acolhimento pleno da herança cristã, como também a tarefa ecuménica tem de ser assumida como prioridade fundamental no nosso tempo (é, por isso, preocupação e dever que estão no coração de Bento XVI desde o início do seu pontificado).

Importa não esquecer – terceiro aspecto – que, como noutros âmbitos, a figura ecuménica de Joseph Ratzinger está marcada na memória presente pela sua acção como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Os documentos publicados – sublinho a Communionis Notio, de 1992, e a Declaração Dominus Jesus, de 2000 – e as questões (importantes) nele levantadas colocaram-no inevitavelmente sob o fogo da discussão teológica e da diversidade de leituras em termos ecuménicos.

É notório, por fim, que, no pensamento e no modo de agir de J. Ratzinger/Bento XVI, a situação e o futuro ecuménicos assentam num caminho bipolar diferenciado que privilegia a aproximação ao mundo cristão do Oriente em comparação com o diálogo católico-protestante, atravessado por divergências eclesiológicas profundas e por novos problemas no campo ético. Para o teólogo J. Ratzinger (que foi membro da Comissão Internacional de Diálogo Teológico Católico-Ortodoxa), o facto de a tradição oriental/ortodoxa ter mantido, apesar da ruptura, a unidade estrutural baseada sobre o princípio vigente desde o século II da sucessão apostólica no episcopado é um elemento diferenciador absolutamente decisivo.

 

2. Esta preocupação prioritária já deu os seus frutos com o renascer de um novo clima no diálogo católico-ortodoxo e a aprovação, em 2007, em Ravena, pela Comissão Teológica Mista de um documento sobre as “Consequências eclesiológicas e canónicas da natureza sacramental da Igreja”. Pela primeira vez, os representantes ortodoxos reconhecem aí um nível universal da Igreja e admitem que, também a esse nível universal, existe um Primaz, o qual, à luz da prática em vigor desde a Igreja antiga, só pode ser o Bispo de Roma. Na perspectiva da próxima reunião plenária prevista para Setembro deste ano, a Comissão trabalha agora um documento sobre “O papel do bispo de Roma na Comunhão da Igreja no primeiro milénio”. Num livro de 1982 – recorde-se – J. Ratzinger retomou uma afirmação feita já em 1976: “No que respeita à doutrina do papado, Roma não deve exigir do Oriente mais do que foi formulado e vivido no primeiro milénio”. O que não quer dizer – clarificou posteriormente – que se possa simplesmente eliminar o segundo milénio da história da Igreja e o desenvolvimento dogmático nele verificado.

 

3. Poucos saberão que, no mais conhecido dicionário teológico protestante – Religion in Geschichte und Gegenwart, V, 1961 – J. Ratzinger escreveu um texto sobre a avaliação do “Protestantismo na perspectiva católica”. As reflexões então feitas indiciam convicções teológicas fundas que permanecem ao longo da vida do teólogo, do responsável eclesial na Cúria Romana, do bispo de Roma. Aí se salienta que a questão fulcral eclesiológica que separa o protestantismo da Igreja católica (e dos ortodoxos) é a questão da sucessão apostólica como forma indispensável da tradição da fé. Não obstante isso – observa – o protestantismo tem riquezas que não podem ser ignoradas no mundo católico. Se, em razão do não reconhecimento da sucessão apostólica em sentido estrito, não se pode falar aqui de “Igreja” em sentido pleno, é, no entanto, indiscutível a existência de elementos que importa valorizar como realização positiva da fé cristã. Nessa linha de pensamento deixa claro que o ministério (mesmo se está fora da sucessio propriamente dita) e a eucaristia protestantes não são realidades “nulas”, sem qualquer valor salvífico e eclesial.

 

4. As tomadas de posição da Congregação para a Doutrina da Fé – concentro-me aqui na Declaração Dominus Jesus, onde se reafirma como interpretação correcta conciliar a convicção de que a Igreja de Jesus Cristo existe plenamente só na Igreja católica (fora dela existem apenas elementos de santificação e de verdade) – foram mal acolhidas pelas “Comunidades eclesiais” (evita-se intencionalmente o termo “Igreja”) provenientes da Reforma. Essa posição, no entanto, já estava presente num comentário feito uns bons anos antes por J. Ratzinger  sobre o nº 8 da Lumen Gentium: com a fórmula subsistit (em vez de est) o Concílio, tocando embora no ponto nevrálgico do problema ecuménico, quis afirmar que a Igreja de Jesus Cristo se pode encontrar na Igreja católica “como sujeito concreto neste mundo”, contrariando-se assim qualquer “relativismo eclesiológico”.

Um ano antes (1999) tinha-se procedido, não sem dificuldades, à assinatura da Declaração conjunta católico-luterana sobre a justificação pela fé. Este sinal concreto da “fraternidade redescoberta” entre católicos e luteranos (palavras de Bento XVI) não teria sido possível sem a intervenção positiva final do Cardeal Ratzinger. Foi, sem dúvida, um passo de enorme significado ecuménico, mas, na realidade, o conteúdo deste documento ainda não foi “recebido” nem no campo luterano nem na Igreja católica.

Compreende-se assim melhor porquê Bento XVI é uma figura “respeitada” no mundo protestante, sem despertar, no entanto, especial “entusiasmo” ecuménico (ainda em Janeiro passado Margot Kässmann, bispa luterana e ex-Presidente da Igreja Evangélica Alemã, dizia que, cinco anos depois, nada mais havia a esperar em termos ecuménicos do actual pontificado). A crítica, mesmo que injusta e precipitada, aponta para um problema real: o diálogo ecuménico com as Igrejas/Comunidades eclesiais do Ocidente atravessa uma fase difícil. A realização em Fevereiro passado, em Roma, de um Simpósio para fazer um balanço dos diálogos ecuménicos no pós-Concílio e a recente visita de Bento XVI à comunidade luterana de Roma adquirem neste contexto particular significado.

 

5. Como noutros aspectos do seu pontificado e da sua vida (recordo o lema episcopal “Cooperador da verdade”), Bento XVI coloca também aqui como tarefa nuclear a busca e a afirmação da verdade. Daí o seu posicionamento crítico face a um ecumenismo “superficial” que, subalternando e não enfrentando até ao fim a questão da verdade, não consegue atingir a unidade propriamente dita.

Mas ele sabe também que a preocupação pela verdade não pode ser adequadamente mantida com exigências unilaterais e maximalistas de parte a parte. Maximalismo católico – escreveu – seria, por exemplo e relativamente ao protestantismo, considerar “nulos” os ministérios eclesiais protestantes e exigir, pura e simplesmente, a conversão ao catolicismo. Como seria maximalismo protestante pedir à Igreja católica o reconhecimento, sem limitações, de todos os seus ministérios e a aceitação de uma concepção de Igreja que renunciasse à estrutura apostólica sacramental.

De resto, há na maneira de sentir e de pensar o problema ecuménico em J. Ratzinger/Bento XVI um realismo que surpreende. Consciente das dificuldades que acompanham esta complexa tarefa, tem apelado com insistência a que se saiba valorizar o presente: apesar do mal que representa, a divisão dos cristãos é uma realidade que devemos saber ver na abertura aos dons de Deus, procurando caminhar o mais possível em conjunto, assumindo o que de positivo e fecundo se vai manifestando, purificando a fé comum na descoberta da centralidade do amor evangélico. Também aqui é “o amor na verdade” que nos ajudará a saber distinguir entre o que é essencial e aquilo que não o é.

José Eduardo Borges de Pinho, Professor de Teologia na UCP

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