Homilia do Arcebispo de Braga na Quarta-feira de Cinzas

A minha responsabilidade perante a injustiça

A Quaresma acontece, no peregrinar da existência dos cristãos e das comunidades, como tempo de particular densidade de conteúdos a que todos devem aproximar-se. Num momento em que a Humanidade vive à deriva, numa experiência de crise que, parecendo de índole económico-financeira, é muito mais profunda, a Igreja solicita aos cristãos que preencham este período com espaços de silêncio para recentralizar a vida pessoal num contributo específico a dar à Humanidade.

Importa, por isso, acreditar na força do deserto e ousar ouvir a sua mensagem. Esta não virá dos ventos da moda nem das correntes ideológicas reinantes. Vem de mais longe e pode abrir perspectivas de luz orientadora. Como exigência da fidelidade a Cristo, colocamo-nos no itinerário apresentado pelo Papa Bento XVI. Criamos comunhão universal e preparamo-nos para acolher a sua visita a Portugal como graça portadora de um programa para a nossa Arquidiocese.

Neste cenário de crise generalizada e de desconfiança perante o amanhã, há opções capazes de criar estilos de um humanismo novo. A justiça é o parâmetro mais adequado e a sua compreensão deve gerar compromissos novos. “A justiça de Deus está manifestada mediante a fé em Jesus Cristo” (conf. Rom 3, 21-22), este é o ponto inaugural da mensagem do Santo Padre para nos deixar duas orientações muito concretas a partir do significado da palavra “justiça”. Sabemos que, na linguagem comum, justiça quer dizer “dar a cada um o que é seu – dare cuique serum.

Todo e qualquer ser humano tem direito àquilo que é “seu”. Mas, como assegurar o necessário para si e para os outros, não por concessão de alguns, mas por direito próprio? A resposta é inequívoca. Para gozar de uma existência em plenitude, precisa de algo muito íntimo que só lhe pode ser dado gratuitamente. Pode parecer que os bens materiais satisfazem. “Como e mais do que o pão ele (o homem moderno) de facto precisa de Deus”.

A identidade verdadeira reside neste deixar-se possuir, permitir que Alguém, livremente, o ocupe de modo a não permitir vazios e insatisfações. Este é o verdadeiro direito que estrutura a justiça. Só que ele acontece na decisão pessoal e inalienável de cada um.

Necessitamos de Deus, talvez através de uma reinterpretação ou de uma mudança do que pensamos que Ele seja, e é Deus que está a faltar. Muitos poderão não aceitar. Alguém terá de o mostrar. Serão poucos? Que os católicos ofereçam à sociedade esta certeza. Se a Arquidiocese está a celebrar os 300 anos dos Lausperenes em Braga, penso que a adoração pode corresponder a este encontro pessoal com Cristo.

A leitura da Nota Pastoral Louvor Perene, cuja leitura aconselho vivamente para este tempo quaresmal, pode facilitar este reconhecimento de dar a Deus o lugar que deve ocupar na nossa vida. Dar a cada um o que é “seu” significa, ainda, consciencializar-se da existência de múltiplas injustiças.

 A sociedade hodierna não quer que a realidade seja conhecida. O cenário da actual crise multiplicou as situações, embora pareça que tudo continua bem. A miséria está à nossa porta e as condições de vida de muitas pessoas são verdadeiramente injustas, pois não possuem o mínimo para experimentar a dignidade.

O cristão não pode adormecer e iludir-se no seu egoísmo. Precisa de consciencializar-se e assumir um papel interventivo que modifique essas condições inumanas. Abrir os olhos significa encontrar-se com as causas destas desigualdades, e aqui o Santo Padre aponta um caminho. Diz ele que muitas ideologias encontram a origem do mal numa causa exterior e que bastaria remover esta causa exterior para acabar com as injustiças. Ninguém ignora a responsabilidade de tantos e das autoridades na multiplicação de injustiças escandalosas. Só que urge reconhecer uma “força de gravidade estranha” que leva o homem a concentrar-se em si e fechar-se aos outros quando deveria abrir-se ao amor. Impera o egoísmo quando deveria acontecer uma permanente abertura para se identificar com os males que afligem os outros e comprometer-se na sua solução.

Esta é a grande novidade cristã. A conversão a Cristo reside neste descentralizar a vida de si para caminhar com os outros em gestos de comunhão e partilha. Ninguém cresce verdadeiramente na auto-suficiência. Somos indigentes dos outros e de Deus e somos os artífices da verdadeira libertação, dando um contributo positivo para uma sociedade justa “onde todos recebem o necessário para viver” segundo a própria dignidade de ser humano.

Esta é a grande novidade evangélica, a que o conhecimento da Palavra, acolhida generosamente, vai delineando os contornos de uma existência autenticamente cristã. Não será que esta atitude de conversão interior deve levar-nos a concentrar no Programa Pastoral Acolher a Palavra, como apelo à mudança de vida pessoal e comunitária? Nas pegadas da Dei Verbum, não devemos situar-nos no essencial do Novo Testamento como apelo de autêntica libertação?

Cientes do egoísmo reinante, façamos desta Quaresma um particular momento de sobriedade para testemunhar uma solidariedade capaz de dar mais beleza à vida. Sobriedade e solidariedade para um mundo mais justo é o programa que Deus espera de nós. Ousemos interpretá-lo com ousadia.

17 de Fevereiro de 2010

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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