Escuta para Comunicar

Abertura do Congresso Internacional «À Escuta da Palavra»

Rezam as Crónicas que, em 30 de Agosto de 1560, o Beato Bartolomeu dos Mártires entregou à companhia de Jesus, em documento assinado pelo Beato Inácio de Azevedo como procurador de S. Francisco Borja, o chamado colégio de S. Paulo e Estudos. Aí deveria incrementar-se o estudo de humanidades e língua latina, um curso de Artes, uma disciplina de casos de consciência juntamente com um Mestre de ensinar a ler e a escrever. Este colégio dava continuidade aos Estudos Públicos iniciados por D. Diogo de Sousa, completados pelo Infante D. Henrique e restaurados por D. Baltazar Limpo.

Com funcionamento distinto e específico, o Beato Bartolomeu dos Mártires, com a resistência por parte do Cabido que afirmava ser suficiente o referido Colégio de S. Paulo e Estudos, começa a edificar em fins de 1571 ou princípios de 1572, no Campo da Vinha de S. Eufémia, o Seminário que dedicou a S. Pedro. Começa a funcionar em Outubro de 1572, com o Reitor P. Fr. João de Leiria dando concretização ao que o Concílio de Trento determinara no Capítulo XVIII da sua sessão 23.

São os 450 anos do Colégio de S. Paulo e Estudos que queremos celebrar. Não só como mera evocação de quem recorda a ousadia e a responsabilidade de saber estar nas exigências duma determinada época por parte de grandes arcebispos. Interessa-nos a história dinâmica naquilo que ela está a dizer-nos neste tempo que nos é dado viver.

É já um lugar comum, e com dimensão de redundância falar de crise. Esta quase sempre gerou pujança e renovação. Os séculos XV e XVI oferecem-nos esse testemunho. A Igreja apercebeu-se duma situação nova e soube ser fiel. As respostas aconteceram e hoje são desafio. Daí que não devemos desperdiçar esta crise. Saibamos aproveitar esta efeméride. Descortino três propostas para o hoje da Igreja em Braga e partir do acontecimento que celebramos.

1. Quando a Igreja efectua uma imersão na humanidade, apercebe-se das emergências e urgências mais relevantes. Não lhe interessa estar só informada sobre os acontecimentos quotidianos sociais, políticos, culturais, mas coloca-se numa constante relação com os problemas e com as sensibilidades nunca se separando do que angustia ou dá alegria e esperança.

Outrora o Colégio foi a concretização desta consciência. A Igreja soube estar na vanguarda e testemunhar pioneirismo para preparar e viver um novo humanismo que os filósofos renascentistas e iluministas começavam a delinear. Olhava-se para os pensadores antigos mas pretendia-se um novo tido de homem de tal modo que a característica fundamental dos novos humanistas era uma presunção desmesurada onde o orgulho se aliava à vaidade para cultivar o culto da personalidade rompendo com preconceitos e cadeias que atribuíram à Igreja, Estado ou determinações consuetudinárias. Fixar-se no valor do indivíduo fazia com que a consciência de pertença e integração numa comunidade, religiosa ou civil, fosse considerada como uma pressão ou contradição da liberdade individual.

Destruindo os alicerces duma convivência, apostavam em comportamentos de auto-suficiência e, muitas vezes, “frivolidade”. “Incensavam-se mutuamente e falavam de glória imortal. Talvez em nenhum outro tempo existissem tantos “imortais” poetas e literatos, príncipes e estadistas, que na realidade nada produziram de imortal” (L. Herting. Stória della Chiesa).

A Igreja soube reagir na aposta cultural que efectuou. Caminhou sobre estes novos itinerários, eliminou os exageros individualistas e de excesso de protagonismo e generalizou uma formação que foi suscitando uma nova cultura capaz de caminhar com estes movimentos sem se deixar contaminar.

A brevidade dumas palavras de abertura deste Congresso não me permite devaneios literários ou aplicações concretas aos dinamismos da história actual. Permitam uma observação.

Não faltam profetas nem detentores da verdade relativista no intuito de preservar e promover a liberdade individual. São novos heróis a agir, repletos de presunção, ignorando a frivolidade dos seus pensamentos. Estamos aqui e aqui teremos de responder. Saber ser digno desta hora é suscitar um novo humanismo onde a referência a Cristo é irrenunciável mas com parâmetros que propõem um novo estilo. O Evangelho marcará sempre uma sabedoria. Que a Igreja a saiba propor.

2. Naquela época conturbada a Igreja reinterpretou a novidade da sua missão através duma inovação nos intérpretes e protagonistas. Os sacerdotes continuaram a ser em grande número e muitos sem grande formação. Só que, assim como na mudança epocal da Idade Média surgiram as Ordens Mendicantes, agora emergem as Ordens Regulares (Paulo III ficará ligado às novas ordens Religiosas assim como Inocêncio III às Ordens Mendicantes).

Surgiram Associações de Sacerdotes e leigos ligados a uma igreja concreta, que, posteriormente, nunca se transformaram em ordens religiosas mas adquiriram uma organização estável, como aconteceu com o Oratório do Divino Amor de S. Caetano e Carafa. Eram sacerdotes dedicados à cura de almas, sem as determinações monásticas, só que viviam em comum. Eram os “clérigos reformados” ou “clérigos regulares”.

Alguns exemplos poderíamos referir como sacerdotes com uma vida estritamente conforme aos deveres clericais com o nome da Igreja em redor da qual viviam (Teativos de Chieti, que antigamente se chamava Theate Masucinourm, S. João Emiliano junto a Bergano os “Somascos, S. António Zacaria (Milão) os “barnabitas” etc.).

Neste contexto aparecem, também, os Jesuítas aprovados pelo Papa Paulo III em 1540. Procuravam “tudo para maior glória de Deus”e os Exercícios de S. Inácio não pretendiam criar uma nova espiritualidade. “Era um manual do cristianismo corrente, do heroísmo–cristão natural e espontâneo.”

O Colégio de S. Paulo entregue aos Jesuítas pode sugerir um novo modo de viver o sacerdócio neste tempo de individualismo, relativismo, onde a liberdade navega por espaços nem sempre dominados por um sentido de fidelidade ao Magistério e aos compromissos assumidos em plena consciência e liberdade. Para viver para os outros é necessário viver com os outros e, em comum, assumir projectos de espiritualidade onde o desejo da radicalidade configura personalidades e proporciona uma actualidade de vida verdadeiramente revolucionária que deixará marcas nas comunidades. O Sacerdote diocesano necessita de discernir o seu verdadeiro estatuto e dar corpo às orientações do Concílio Vaticano II, vivendo “em íntima fraternidade sacerdotal”.

3. Este Congresso Internacional, aberto a todos, é preferencialmente destinado aos sacerdotes. “À Escuta da Palavra” é a temática. Pretendem-se escutar a palavra que o mundo post-cristão dirige para se aperceber do valor imprescindível da escuta da Palavra de Deus. Esta deve ser compreendida à luz daquela para lhe abrir horizontes que ainda não conhece.

É nesta dupla atitude que o Sacerdote deve redescobrir a sua identidade, no sentido de intuir o que significa “ser padre hoje e para hoje”. Ninguém desconhece que a post-modernidade, o individualismo libertário, o fundamentalismo, o indiferentismo, nos lançam verdadeiras provações. É verdade que a cultura contemporânea não permite uma continuidade dum modelo fundamentado em critérios históricos. Não se trata de ceder, mas importa situar-se e ouvir os tempos modernos.

Pensando na “identidade” nunca a poderemos entender como “exclusiva”, “contrapositiva” ou “por separação”. Não poderemos continuar a ser uma casta ou religiosos no sentido de pessoas que fogem do mundo. Como sacerdotes seculares estamos no “seculum” que quer dizer sacerdotes no mundo e para o mundo.

Isto não significa que somos do mundo dando à nossa vida uma caracterização “mundana”. Aqui situa-se o grande problema para quem pretende ser ou chamar-se moderno. Há um estilo que não nos confunde e ninguém pode pretender que vivamos segundo critérios e parâmetros que não manifestam a presença de Cristo sacerdote no nosso “ser” e “agir”.

Estamos para além de determinadas vivências e sabemos que, como Cristo, a nossa vida original e diferente deve ser “pro mundi vita”, “para a vida do muno” (Jo 6, 31). A identidade poderá parecer um “mistério” no empenho quotidiano de discernir o que devemos e podemos ser para o serviço a Cristo Jesus e aos nossos contemporâneos e companheiros de viagem para o Reino. Este “pró mundi vita” exige que a nossa identidade seja “comunicativa” e “relacional”, o que quer dizer que emerge duma relação dialógica com Deus e, segundo o modelo do diálogo de Cristo, com o mundo post-moderno. Comunicamos na medida em que uma “relação” de escuta e resposta, muito concreta e empenhativa, acontece. Não há um esquema feito em termos de intocável para a intimidade com Deus e para o ministério pastoral. Escutar – Deus e os outros – para lhes oferecer a Palavra, que antes foi escutada, molda a personalidade do padre.

Que este Congresso seja contributo positivo para discernir a diferença do ser padre, hoje, em confronto com o passado da Igreja. Assim não desperdiçaremos esta crise que pode suscitar algo novo. Basta que a saibamos interpretar.

Auditório Vita, 12 Janeiro 2010

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz

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