Homilia do Bispo do Porto no Domingo de Páscoa

Sejamos Páscoa para a multidão que nos espera! Chegámos à Páscoa, amados irmãos e irmãs. E, concluindo estes dias absolutos, um sentimento devemos ter e uma pergunta devemos fazer-nos. O sentimento só pode ser de acção de graças. E a pergunta é esta: – Como ficámos nós, tendo ouvido o que ouvimos e celebrado o que celebrámos? Acção de graças, antes, durante e depois de tudo, em perpétua Eucaristia, que as graças de Deus só eternamente se agradecem. Entre tantos acontecimentos e perplexidades que nos tocam de perto ou de longe e nos deixam, como pessoas deste tempo e deste mundo, entre a expectativa e o desengano, as perspectivas ou a falta delas; entre realidades de variados âmbitos que nos poderiam deixar interrogativos ou inquietos: fomos vivendo em três intensíssimos dias, espiritualmente ligados a uma multidão de cristãos que o fizeram connosco nas mais diversas situações por esse mundo além, o que Cristo nos ofereceu com a sua Paixão, Morte e Ressurreição, de há dois milénios para sempre. E o que Cristo nos deu, nas palavras que guardámos e nos gestos que liturgicamente reproduzimos, resume-se a uma realidade total: – Ele mesmo! Sim, amados irmãos e irmãs, na paixão, entre tanta atrocidade que sofreu, foi Ele próprio que se ofereceu, da Ceia à Cruz. Mesmo no sepulcro, era a sua oferta também, qual semente lançada à terra para germinar em vida, a nossa vida. Porque a sua vida ressuscitada é-nos oferecida agora, começando em cada baptizado a última novidade do mundo. Precisamente a que celebramos nesta manhã pascal que, ao contrário das habituais, não tem amanhã: é já o oitavo dia, o “Domingo que não tem ocaso”. Por isso nos atrai tanto, como só a realidade total efectivamente atrai. Porque o sabemos, agradecemos. Porque muitos ainda não o sabem – ou já “esqueceram”, porque realmente o não souberam – faremos da nossa vida um “evangelho”, sentindo, falando e agindo unicamente a partir da ressurreição de Cristo. E não nos pareça demasiado, porque é apenas o começo. Indispensável e urgente, como boa nova para a esperança do mundo, onde esteja gasto e sofrido. Retomemos as palavras ouvidas, para nos retomarmos precisamente a partir delas. Leiamo-las devagar, para que cada uma delas se inscreva nos corações, tanto ou mais do que a escrita do Sinai se gravou na antiga pedra. Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro… Tudo aconteceu connosco: a urgência de Madalena, antes de mais, pois quem mais ama é quem mais vê e mais depressa. Deixara ela a Magdala onde vivia, para seguir e servir o Rabi da Galileia, que nunca mais deixou. Até à cruz e agora ao sepulcro, onde julgava encontrar o seu cadáver. Por que o julgava, ainda estava “às escuras”, que assim estaríamos nós, se não soubéssemos da ressurreição acontecida. Nem a pedra retirada lhe deu a compreensão imediata do que sucedera, tão inaudito era de facto. Correu a chamar Pedro e o outro discípulo, julgando que lhe tinham levado o Senhor… Correram estes ao sepulcro e viram apenas as ligaduras e o sudário, tudo dum modo que dava que pensar… Viu-o especialmente “o discípulo”, que viu e acreditou. Este discípulo, que a tradição identifica como João, não é nomeado. Diz-se apenas que era “o discípulo predilecto de Jesus”. Notável referência é esta, amados irmãos, porque exactamente assim nos inclui a nós. É a predilecção do Senhor que nos evidencia a sua presença, tanto mais quanto lhe correspondamos em constante procura e profunda devoção. “Vemos”, realmente vemos, os sinais da sua vida ressuscitada, como o discípulo viu as ligaduras no chão; mas o coração alonga-nos infinitamente a vista e evidencia-nos a sua presença total e arrebatadora. É outra luz, luz que nos traz ainda mais vida do que o sol a traz à terra quando desponta. Peçamo-la de novo. Com a oração da Missa: “Concedei-nos Senhor do universo que, celebrando a solenidade da ressurreição de Cristo, renovados pelo vosso Espírito, ressuscitemos para a luz da vida”. Se quiséssemos resumir agora, para projectar na vida, o que acabámos de ouvir, talvez o pudéssemos fazer nestes termos: é no amor que vemos Cristo e Cristo faz-nos testemunhas do seu amor. Não nos admirará esta asserção, pois sabemos por experiência própria que só conhecemos realmente aqueles que amamos. Sem disponibilidade e benevolência em relação aos outros, nunca os compreenderemos bem, nem em si mesmos nem na intenção do que digam ou façam. Cristo, que inteiramente nos ama, numa predilecção onde cabemos um por um, conhece-nos absolutamente. A Cristo conhecê-lo-emos mais e mais, na medida em que guardarmos a sua palavra e retivermos os seus gestos, na leitura, na oração e na vida sacramental. De tudo ressaltará uma presença, em tudo se experimentará vida nova. Tanto mais que, como aconteceu com Madalena, Pedro e o discípulo, também acontecerá connosco em Igreja e na proximidade dos outros ou em relação aos outros. A vida ressuscitada de Cristo alarga e oferece em toda a parte a comunhão plena com Deus e com os outros, e com Deus “através” dos outros. É quando estamos reunidos em nome de Cristo que mais experimentamos a sua presença no meio de nós. Foi esta a sua promessa, por ela somos Igreja. Também é no serviço aos outros que o servimos a ele, pois se identifica com a cruz inteira do mundo, que fez sua, para dela e da morte ressuscitar, ficando ainda mais connosco. Podemos e devemos concluir que ver as coisas a esta luz faz-nos peregrinos da ressurreição no mundo, em caridade ressuscitadora. Abre-se agora o tempo pascal, que devemos viver com particular empenho nas actuais circunstâncias. O Evangelho falava-nos da perplexidade dos que “ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos”. Dois milénios depois, é a experiência certa da ressurreição de Cristo que nos faz entender as Escrituras, precisamente a partir dela, e nos faz perspectivar a vida a partir da vitória de Cristo sobre a morte. Morte é a não vida, sendo seus sinais, tristíssimos sinais, todos os actos ou omissões, pessoais e colectivos que eliminem ou diminuam a existência humana e a harmonia do mundo. Vão do desrespeito pela vida, quando esta não é considerada na sua inteireza, da concepção à morte natural, ao desprezo pela dignidade de cada um, que só em condições normais de educação, saúde, trabalho, justiça e participação cultural e cívica se pode realizar, do plano local ao internacional. Vida é não morte, ou melhor, é cumprimento de todos num saudável colectivo que tem em Deus uno e trino a sua origem e o seu destino feliz. “Tempo pascal” são dias preenchidos de caridade, amor novo que o Espírito de Cristo derrama em nossos corações, como primeiro dom do Ressuscitado: não temos outro sinal nem certificação de que as nossas vidas são pascais também e por isso mesmo renovadas e livres. Mas este mesmo nos basta, para abrirmos em Páscoa todo o tempo que se segue e florirmos em esperança cada local e circunstância que integremos. Nestes dias sairá o “compasso”, levando por ruas e casas o anúncio da ressurreição de Cristo, para que aí mesmo ressuscitem as vidas. E é urgente que, nos tempos que correm, esse anúncio leve esperança e coragem a quantos estão tristes ou deprimidos pelas mais diversas razões, da doença ao desemprego, da solidão ao cansaço. Como urgente é também que, recolhido o compasso, ele continue na vida e no testemunho de todos os discípulos do Ressuscitado, pois não lhes faltará vida para partilharem nem luz para iluminarem quem dela careça. E o que agora temos “em vez” dos outros é exactamente o que temos “para” os outros, pois graças são encargos. Tempo pascal é geralmente tempo de “comunhões”, primeiras ou outras, onde a vida ressuscitada de Cristo nos é sacramentalmente, realmente, oferecida. Pois que sejam fervorosas, para serem socialmente consequentes, em autêntica “prática”. O tempo pascal conclui-se em Pentecostes, irradiação universal do Espírito de Cristo. Uma antiga tradição fazia deste tempo ocasião de mais fraternidade e partilha. Nalgumas terras portuguesas ou da nossa diáspora, mantêm-se ou retomam-se, da Páscoa ao Pentecostes, festejos tradicionais ou renovados, onde se reconciliam e aproximam pessoas, se partilham refeições e se aclama o Espírito. E muito bom será se, do mesmo modo que a Quaresma está plena de sugestivos motivos de conversão e penitência ligados à Paixão de Cristo, tão compartilhada por sua Mãe Santíssima, nós conseguirmos preencher também os cinquenta dias pascais de motivos próprios de caridade e paz, no Espírito do Ressuscitado. Há aqui algo a recriar, também como Nova Evangelização. Na verdade, caríssimos irmãos e irmãs, tudo quanto celebrámos neste Sagrado Tríduo é demasiado importante e necessário a todos, para que fique apenas na recordação dalguns: – Sejamos Páscoa para a multidão que nos espera! Sé do Porto, 12 de Abril de 2009 + Manuel Clemente

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Agência ECCLESIA

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