Homilia do Arcebispo de Braga na celebração da Paixão e Morte do Senhor

Para que o perfume da Palavra chegue a todos os ambientes Na proclamação do relato da paixão não percorremos uma Via-sacra única e exclusiva de Cristo. Estivemos numa estrada real onde Cristo caminhou connosco até à cruz, morrendo crucificado entre dois homens. Não se trata dum relato ou duma recordação de algo do passado. Aqui e agora, Ele continua no meio das dores humanas, assumindo-as, para lhes dar sentido e significado. Sabemos que o mundo hodierno nos apresenta situações dum realismo tal que lhe podemos aplicar as palavras de Isaías. O meu servo estava “tão desfigurado que o seu rosto tinha perdido toda a aparência dum ser humano” (Is 52). Ninguém ignora a verdade destas palavras aplicadas a tantas vidas dos nossos contemporâneos. Existem situações que incomodam e não gostaríamos de ver. Parecem irreais mas estão aí ao nosso lado e nas crónicas dos nossos órgãos de comunicação social. É inútil ignorar ou acreditar em discursos que parecem distrair-nos do quotidiano português. Muitos nossos irmãos percorrem a estrada da existência com cruzes pesadas a provocar muita dor e sangue. A Carta aos Hebreus dirigiu-nos a palavra que deve “encontrar-nos”. “Maltratado, humilhou-se voluntariamente e não abriu a boca. Foi eliminado por sentença iníqua, mas quem se preocupa com a sua sorte” (Heb 5, 8). Se muitos sofrem, há outros que nem conseguem abrir a boca por razões que não deveriam existir mas persistem. “Quem se preocupa com a sua sorte”. Eis a interpelação que Sexta-feira Santa repete anualmente. Preocupar-se com a sorte de quem sofre e constituir-se Cireneu que acompanha, pode não destruir a cruz mas alivia. O Cristo em que acreditamos não é “um sumo sacerdote incapaz de se compadecer das nossas fraquezas”. Com Ele e por Ele teremos de nos tornar “causa de salvação eterna” (Heb 4 e 5), dando sentido e esperança. A morte de Cristo coloca-nos perante a certeza de quanto nos recordava Isaías. “O meu servo cresceu diante do Senhor como um rebento, como raiz numa terra árida”. (Is 52 e 53). Aqui teremos de nos situar. Importa ver Cristo sem beleza para atrair o olhar, sem aspecto agradável que possa cativar-nos, como homem das dores, desprezado e repelido por todos, castigado e humilhado, ferido e esmagado, sobre quem parece ter caído o castigo. Tudo isto e muito mais descortinados, aqui e agora, com outros nomes mas com a mesma densidade de dores que nem sempre se consegue explicar. É no meio destes contrastes e negações da dignidade humana que a Igreja e os cristãos devem tornar-se uma raiz dum mundo novo que surge nesta terra árida e ressequida. Teríamos razões para atribuir a muitos e à sociedade, nas suas autoridades, a responsabilidade pelos males que conhecemos e pelas dores que ignoramos. A cruz de Cristo obriga-nos a outra atitude: fazer florir desertos e acreditar firmemente que a esperança voltará a ter espaço e o amor reinará como luz que vence as trevas. Outra proposta que a Paixão do Senhor nos deixa. No meio de tudo isto encontramos o exemplo de José de Arimateia que dá o seu melhor para um Cristo morto e, com isso, vai tornar-se a causa de que a pedra grande que escondia a realeza de Cristo se retire e Ele volte com novo esplendor, na manhã da Ressurreição. Recordo alguns pormenores da leitura da Paixão. José de Arimateia “pediu licença a Pilatos para levar o corpo de Jesus”; “envolveram-nos em ligaduras juntamente com perfumes, como é costume sepultar entre os judeus”. “No jardim havia um sepulcro novo, no qual ainda ninguém fora sepultado”. Aí o depositaram. (Jo 19, 39-42). Neste ambiente sereno de contemplação da morte de Cristo, torna-se necessário fazer silêncio para que nos deixemos “encontrar pela Palavra” que solicitará novidade de vida como novo era o sepulcro onde depositaram o corpo de Cristo. Esta novidade deve acontecer no coração das pessoas e na vida das comunidades. Nestas nem sempre a pastoral está possuída pela Palavra e continuamos persuadidos de que o fundamental é subsistir no meio das hostilidades com um ânimo de desalento e desencanto. Só com caminhos ainda não percorridos, como o sepulcro de Cristo que não tinha sido usado por ninguém, a Palavra chegará a todos e a todos os ambientes. Na verdade, os ambientes profissionais e de vida reclamam que a Palavra seja lá colocada para que readquiram alma e não tropecem nos desenganos de doutrinas erróneas e mal entendidas a impor-se no desrespeito pela dignidade de muitas pessoas, na pouca consideração pela vida que nasce ou que chega ao seu termo, na confusão de convivências humanas que pretendem estatutos ocupados cultural e antropologicamente por outras realidades, na proliferação de leis que permitem interpretações subjectivas a provocar adiamentos judiciais incompreensíveis ou injustiças a favor dos mais poderosos, no espaço da educação onde se impõe um relativismo ético e moral em substituição dum apontar caminhos de valores. Estas e outras realidades são os novos desafios onde a novidade de Cristo deve chegar. Em simultâneo, Cristo, como todos os outros judeus, é perfumado excessivamente com os gastos inerentes a quem o considera como o Ungido, o Enviado do pai. Aqui, na sua austeridade testemunhal dos tempos actuais onde a Igreja deve cortar despesas desnecessárias, descortina a força de novos meios a usar para que a Palavra ecoe de modo convincente. Nem todos os gastos com o anúncio da Palavra são materiais. A preparação através dum estudo persistente, o tempo reservado para uma compreensão interior dos conteúdos, uma atenção aos sinais dos tempos a facilitar respostas oportunas se o seu conhecimento acontecer em espírito crítico, um aprender com a linguagem das novas técnicas e, particularmente, uma nova alma no primeiro anúncio, na catequese, na formação permanente, nas celebrações litúrgicas, no serviço aos mais carenciados, no espírito de comunhão familiar, tudo isto e muito mais pode ser o perfume que não custa, a não ser mais dedicação e empenho de todos. Neste sepulcro novo que acolheu o Corpo de Cristo gostaria de colocar o desalento de muitos e os problemas de quem sofre para que os cristãos acordem para um compromisso mais solidário. Mas gostaria, particularmente, de solicitar ao Senhor que entregou a Vida para gerar um novo povo, que Ele torne a pastoral de Arquidiocese como experiência de Jesus-Palavra, dom agradável a todos que connosco vivem e procuram, com sérias dificuldades, a felicidade no viver. † Jorge Ortiga, A.P.

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