A instrução sobre o serviço da autoridade e a obediência

Este documento da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada (11 de Maio de 2008) merece um olhar atento e agradecido. É original e profundo, lúcido e aberto, estimulante e prático. Receio, porém, que bem cedo passe ao baú do esquecimento, dada a inundação de documentos que se sobrepõem e atropelam uns aos outros, antes de serem assimilados e passados para a vida. Chaves de leitura 1. Numa altura em que todos nos sentimos “adultos e vacinados”, falar de autoridade e obediência parece um anacronismo. Desejosas de afirmar a sua legítima autonomia, ciosas da sua liberdade, as pessoas têm dificuldade em aceitar a autoridade, mesmo a de Deus; os fiéis cristãos lidam mal com a função que a autoridade exerce na comunidade eclesial; e a situação repete-se na Vida consagrada. Esta, porém, ou se compreende como seguimento radical do Senhor Jesus, Servo obediente, ou não se compreende. Só a partir daí se pode falar de autoridade que liberta e de obediência que dignifica. 2. A Instrução começa por enraizar a temática na consagração como busca da vontade de Deus, vivida em fraternidade, e em vista da missão. Note-se que as duas primeiras vezes que Jesus “fala” nos evangelhos, são para fazer uma pergunta: “Que procurais?” (Jo 1, 38); “Porque me procuráveis?” (Lc 2, 49). E do mesmo teor é a primeira intervenção de Maria: “Como será isso?” (Lc 1, 34). Que buscam os Consagrados? A resposta deve ser: “A tua face, Senhor, eu procuro” (Sl 27, 8; subtítulo da Instrução). É neste clima que a autoridade e a obediência desabrocham. Na Vida Consagrada não há quem manda e quem obedece, quem está mais acima e quem está mais abaixo. Todos – cada um no seu papel – buscam e cumprem a vontade de Deus. Nisso como noutras coisas a autoridade vai à frente; daí o nome de “prior”, o primeiro. 3. Essa busca faz-se na companhia de irmãos ou irmãs, no meio dos quais a autoridade está “como quem serve”. O papel desta consiste em “fazer crescer” a fraternidade, estimular a criação de comunidades, onde se escute, se dialogue, se gere confiança, apreço, corresponsabilidade, onde todos contribuam para as decisões finais, onde se harmonize o bem da pessoa com o serviço da obra apostólica. O superior é uma expressão do amor com que Deus ama os seus filhos. Cabe-lhe fazer circular a caridade. Onde esta reina, o discernimento decorre com transparência, aceitam-se as decisões com a humildade e a alegria próprias de quem põe os desígnios de Deus acima dos seus projectos pessoais e pontos de vista. 4. A obediência não se refere ao superior, mas a Deus. Ele manifesta-nos a sua vontade por meio da moção interior do seu Espírito e de múltiplas mediações exteriores: a Bíblia, o magistério da Igreja, o projecto carismático do Instituto, as necessidades e aspirações dos seres humanos, os irmãos ou irmãs de comunidade e, de modo particular, os superiores. A Instrução realça o conceito de “obediência fraterna”. A obediência de uns às necessidades dos outros. Na maioria dos dias os superiores não nos mandarão coisa nenhuma; mas a vontade de Deus revela-se por meio das pessoas a quem servimos na missão e dos irmãos ou irmãs que vivem ao nosso lado. “Obedeçam uns aos outros – diz São Bento – sabendo que por este caminho irão a Deus”. 5. Na missão a Vida Consagrada encontra, hoje, a sua alma e muitas dificuldades e desafios. É onde mais se nota o individualismo, o afã de autonomia e de protagonismo, o activismo superficial e destruidor… E é onde mais se precisa de obediência lúcida e responsável, de serviço generoso, criatividade, comunhão eclesial, missão “compartida” e não só repartida, equilíbrio na pertença ao Instituto e a muitas outras coisas… E, sobretudo, a disponibilidade, que é a glória da Vida Consagrada, e que brilha particularmente na missão “ad gentes”. Esta terceira parte é, para mim, a mais frouxa e débil. Conviria apresentar melhor a missão de Jesus e a da Vida Consagrada; insistir mais na proximidade e no serviço aos pobres. Ainda assim, a Instrução ilumina, e bem, a função propulsora da autoridade, as “obediências difíceis”, a objecção de consciência, o sentido de justiça (em relação a vítimas de abusos). 6. Por último, importa vincar o ideal “olímpico” que perpassa na Instrução. O Vaticano II não teve pejo em aplicar o advérbio “mais” aos consagrados: dedicam-se “mais intimamente” ao serviço divino, imitam “mais de perto” a forma de vida de Jesus, configuram-se “mais plenamente” a Ele. Isto bem entendido. Os consagrados não são mais do que os outros fiéis cristãos. Seria uma insensatez pensá-lo. A sua vocação, porém, leva-os a aspirar sempre a mais entrega, a dar respostas mais evangélicas e actualizadas. A autoridade está aí para impedir que a vida pessoal e comunitária se estanque, antes se reinvente cada dia em vista da missão. Daí o finca-pé na formação permanente, no crescimento humano, espiritual, profissional. Não fica mal este recado quando em bastantes famílias religiosas parece que se põe mais empenho em “fazer santos” do que em “fazer-se santos”, em colocar nos altares os próprios fundadores ou irmãos do que em imitar os seus exemplos. P. Abílio Pina Ribeiro (claretiano)

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top