Testemunho do Bispo de Aveiro sobre D. Manuel de Almeida Trindade

Um sereno e brilhante rasto de luz Esta é a expressão espontânea que de imediato me aflora ao pensamento, entre a saudade e a gratidão, para descrever o tempo e a vida do senhor D. Manuel de Almeida Trindade. De 1918 a 2008. Na travessia de um século, quase por inteiro, e no limiar de um novo milénio, marcado pela esperança. Nada do século XX lhe foi indiferente. Nada lhe foi estranho. A Igreja de Portugal não era o que hoje felizmente é sem a sua lucidez, ponderação e coragem; sem a sua bondade, inteligência e determinação; sem a sua fé, testemunho e acção. Guardo, desde há muito, dois belos testemunhos: o de um sacerdote, seu contemporâneo em Roma e condiscípulo na mesma Faculdade, mais tarde meu professor e reitor, e o de um bispo, seu aluno no Seminário de que ele acabava de ser nomeado reitor, hoje mestre e irmão. Um e outro nele encontraram em momentos decisivos de determinantes opções o conselheiro lúcido, o confidente esclarecido e o esteio firme. A vida, aconchegada nas muitas qualidades que em todo o lado o distinguiram, fê-lo iniciar humanamente demasiado cedo para o habitual e para o comum todas as missões a que a Igreja o chamou: sereno e sem vanglória é, com apenas 16 anos, aluno brilhante da prestigiada e exigente Universidade Gregoriana, em Roma; jovem padre, é convidado a assumir a delicada e complexa missão de reitor de um respeitado Seminário Maior; apenas bispo eleito faz a singular e marcante experiência do Concílio; regressado da primeira sessão conciliar vê-se de imediato à frente de uma jovem diocese, ainda não completamente refeita da morte súbita e prematura do seu segundo bispo. D. Manuel, pastor desejado de uma Igreja a viver o alvoroço da juventude e o encanto do Concílio, ensinou-nos com o seu modo inconfundível de ser que só esta brisa conciliar, serena e renovadora, ao jeito do ar fresco, saudável e fecundo da manhã, traria a resposta necessária aos desafios pastorais da evangelização que diariamente surgiam no coração de uma diocese recém-restaurada. Sempre irmanado com Aveiro, foi pastor atento aos dinamismos sociais e aos valores culturais emergentes nos centros de decisão de uma cidade empreendedora e de uma região em crescimento e em progresso e que decididamente estiveram na génese de anunciadas e imperativas transformações da sociedade portuguesa e delinearam o horizonte de liberdade do nosso país em busca do reencontro ansiado com a democracia e com a paz. Aveiro recebeu D. Manuel de Almeida Trindade como sempre o soube e saberá fazer: com inesquecível alegria e imensa esperança. Havia circunstâncias singulares que o tornavam mais próximo de Aveiro e das suas gentes. Tinha o seu berço familiar em terras da Anadia e dali partira para o Seminário. D. Manuel sentiu-se bem em Aveiro, com um vínculo forte, nunca rompido. Este gosto e esta idiossincrasia aveirenses são tão naturais para os que aqui nascem e para os que aqui vivem e trabalham como a ria e como o mar em Aveiro. Basta conhecer a alma aveirense e ler os belos textos do nosso primeiro bispo. Em imagens pelos templos multiplicadas, em sinais impressos nos corações e nas vidas que a sua bênção de pastor espiritualmente tocou, em marcas inscritas em obras humanas edificadas e em monumentos materiais construídos, em tantas iniciativas pastorais consistentes e duradouras, permanece connosco este exímio mestre da fé e pai espiritual que foi D. Manuel, que agora partiu ao encontro de Deus. Irmão afável e acolhedor, D. Manuel procurou manifestar permanente solicitude por todos e afirmar uma fraterna atenção aos sacerdotes e seminaristas. Humano e nobre em tudo, nunca esqueceu que era filho do povo simples, honesto, laborioso e crente. Desse povo que durante o dia ganha o pão com o suor do rosto e à noite agradece a Deus o pão que reparte à mesa. Com desvelo e ternura fala e escreve sobre a sua família. Com enlevo e saudade evoca o seu berço em Monsanto da Beira e traça-nos em coloridas pinceladas de afecto familiar as razões que decidiram o regresso às amadas terras bairradinas. É esta telúrica empatia do semeador e esta bênção sagrada da família que nenhum de nós jamais esquece, que nos fazem bem, nos equilibram e nos rasgam horizontes de missão à maneira das árvores frondosas cujas raízes vão longe buscar a seiva que as alimenta e o húmus sólido que as fortalece. Talvez este gosto pelas raízes, ainda maior para quem tão cedo, hoje diríamos demasiado cedo, se desapegou de Coimbra para ir ao encontro de Roma, lhe tenha acicatado mais o sentido da lucidez, do necessário equilíbrio, da dimensão universal, da consciência católica e do espírito missionário que um servidor da Igreja deve ter. Sempre que a Igreja o chamou a uma missão ou a um serviço, D. Manuel esteve presente: com a espontânea apreensão de um jovem seminarista a caminho de Roma em momentos difíceis da vida da Europa; com a alegria da esperança e da fidelidade de quem, com apenas vinte e dois anos, é ordenado sacerdote; com a ilimitada generosidade, a exigir o total e permanente abandono nas mãos de Deus, de quem diz sim à eleição episcopal; com a prudente serenidade de quem aceita o serviço maior na Igreja de Portugal, que os seus irmãos bispos renovadamente lhe pedem. A exemplo de santa Joana, Padroeira de Aveiro, também D. Manuel fez de Aveiro “a sua pequenina Lisboa”, por onde passaram em tempos exigentes e determinantes da nossa história os caminhos certos da Igreja e de Portugal. É tanto o que lhe devemos! Viveu sempre de acordo com a Verdade e tudo nele era reflexo da Luz afirma na proximidade da memória e na intensidade do afecto, de lá longe nas terras distantes do Maranhão, um dos padres desta diocese de Aveiro. Ao decidir regressar a Aveiro para aqui ser sepultado, D. Manuel cumpre a promessa feita na primeira saudação à diocese e reafirma com este gesto o seu amor nunca rompido a esta terra e a sua doação nunca subtraída a esta diocese, que nele teve um pastor exemplar e nele encontra agora uma bênção perene. D. Manuel de Almeida Trindade é para nós bispos um exemplo de pastor com quem todos aprendemos, ouvíamos em voz autorizada, na Sé Catedral, na solene e sagrada celebração eucarística que se fez memorial vivo da Páscoa, certeza inabalável de Ressurreição e sinal expressivo, digno e belo da comunhão diocesana. Recordo e evoco a imagem de tranquilidade e de paz da hora da morte do senhor D. Manuel como se um sereno e brilhante rasto de luz naquele momento ali nascesse para iluminar, sempre e para sempre, a vida e a missão dos pastores e os caminhos de fé e de evangelização da Igreja de Aveiro. Obrigado, senhor D. Manuel. +António Francisco dos Santos Bispo de Aveiro

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