A uma semana das eleições legislativas e numa altura em que vários organismos da Igreja apelam à participação no ato eleitoral, é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia o presidente da Comissão Justiça e Paz de Viana do Castelo, distrito a que pertence o Concelho de Melgaço e que vem registando os mais elevados níveis de abstenção
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Várias instituições irresponsáveis têm manifestado preocupação com os níveis de abstenção de eleições anteriores. Como é que é possível alterar este ciclo, 50 anos depois da conquista das democracias?
Pois, eu penso que essa é a pergunta do milhão. Isto não se altera, em meu entender, e dramaticamente, numas eleições. Isto é um trabalho que tem de ser feito de formiguinha, através dos anos. E Portugal não tem feito esse trabalho, não sei se outros países também não têm feito. As pessoas estão desencantadas com os políticos. Estão claramente desencantadas com os políticos e com os sistemas que cada vez têm feito aumentar as bolsas de pobreza, porque a pobreza é sinónimo de injustiça e, portanto, as bolsas de mal-estar público, porque a injustiça promove naturalmente a ausência de paz, promove naturalmente os pequenos focos de distúrbio. Isto é um trabalho que tem de ser feito a longo prazo. De qualquer forma, eu não acredito muito, e desculpem-me que o diga assim, eu não acredito muito que os nossos políticos, numas eleições, consigam inverter completamente este processo.
Contudo, à Igreja compete, como outros organismos, aconselhar os cidadãos a participarem ativamente no processo de escolha dos seus dirigentes para um quadriênio ou quinquénio, ou quer que seja o seguinte.
Nós falámos no início desta conversa do caso concreto de Melgaço. Em 2015, dois entre três eleitores não foram às urnas. Nas presidenciais de 2021 mais de 78% dos eleitores não votaram. A emigração pode explicar tudo ou é de facto algo mais que é preciso pensar?
Não, há algo mais que é preciso pensar, porque a emigração não abrange toda a gente. É claro que Melgaço é um concelho muito pequeno. Melgaço tem menos população que a minha freguesia, deve ter 5 mil habitantes, mais ou menos, todo o concelho de Melgaço. De qualquer forma, não está toda a gente emigrada, não é apenas a emigração. É o desencanto que graça em todas as pessoas, em toda a gente. Eu conheço aqui em Viana, gente com formação superior, gente muito bem informada, que diz que não sei se vale a pena votar, provavelmente não vou, ou então se vou, vou votar em branco. Os nossos políticos, por culpa própria ou não, perderam alguma credibilidade ou perderam-na toda. E as pessoas menos informadas, não só, mas as menos informadas, acabam por desistir, dizendo que não vale a pena.
A Conferência Episcopal Portuguesa alertou para um momento difícil e a crise de confiança que se vive no país. Teme que se crie um clima político propício a soluções, digamos, mais radicais?
Temo, temo, temo, temo claramente. O exemplo que vou dar é um exemplo radical, mas foi assim que pessoas como Hitler subiram ao poder. Provavelmente isto tem de começar nas escolas, tem de começar na catequese, e é bom que os catequistas ou as catequistas também se incomodem com isto e vão sensibilizando as suas crianças e depois os jovens, a catequese dos jovens, etc., e a catequese familiar também, que também se fale disto, e também se diga da imperiosa necessidade de sermos parte agente na escolha dos nossos líderes políticos. E depois, claro, obrigá-los a pagarem a fatura se eles não cumprirem minimamente aquilo que era suposto cumprirem em termos nacionais. Agora, que é perigoso, é. É porque os populismos, as demagogias, proliferam precisamente neste tipo de ambientes.
E pergunto-lhe se as recentes polémicas judiciais podem agravar esse ambiente?
São várias sim, as judiciais sim, e essencialmente aquelas que incluem políticos que, corretamente ou não, porque até provem contrários, serão inocentes, mas que se fala de corrupção, se fala de desvios, se fala disso tudo, e é claro que isto interfere também. Mas interfere tudo, não é só isto, interfere tudo. Interfere também a falta de emprego, interfere também a falta de professores nas escolas, interfere tudo.
Como diz o Papa Francisco, os políticos têm de estar atentos, a sociedade tem de estar atenta a uma leitura global do homem e não apenas a uma leitura parcelar. A própria utilização apenas da política como economia, e eu lembro-me que o Papa Francisco na ‘Fratelli Tutti’, a dado momento, diz mesmo que não podemos apenas olhar para uma política apenas baseada na economia. E nós temos feito isso muito neste país e noutros países também na Europa. E também não podemos apenas estar atentos à tecnocracia. É preciso ter uma atenção ecológica ao homem no seu todo, com o global. E, portanto, os aspetos jurídicos interferem? interferem. Mas interferem também as outras coisas. Interfere a falta de confiança, interfere a falta de professores, a falta de médicos. Tudo isso interfere quando nós não entendemos porque é que isso acontece.
O contexto de polarização política que vivemos representa um sinal de imaturidade democrática?
Há quem diga que sim, mas eu não sei se isso é imaturidade democrática ou se é afastamento das pessoas dos mecanismos democráticos. Eu vejo gente a suspirar, neste momento, a suspirar pelo 24 de abril. Eu não sei se as pessoas percebem o salto que nestes 50 anos se deu. Ou percebem, só que estão mais pobres, estão com os bolsos mais vazios, estão com acesso à saúde mais complicado, e provavelmente dizem: eu antigamente sempre tinha isto ou aquilo. Não é verdade, não é verdade de todo, mas facilmente…
E isso remete para a Bíblia e história das “cebolas do Egito”, a tendência de olhar para o passado de uma certa forma mais romantizada?
Claro, claríssimo, e acontece isso muitas vezes. Se era para isto, para que é que nós saímos da escravatura? Então mais valia estarmos na escravatura e tínhamos alguém que nos defendia. É verdade isso. É verdade, mas é um perigo. É um perigo muito grande e a culpa é dos políticos. E é de todos nós que acabámos por não votar. 40% de abstenção, não se aceita. Não pode ser. Como é que quase metade do país abdica de escolher os seus representantes? Não dá.
Pergunto também se a campanha eleitoral deve ser mais um debate de ideias – até dentro daquilo que acabou de dizer – e não tanto um confronto alimentado sistematicamente por polémicas e fait-divers?
Eu ouvi um determinado líder partidário, que apenas se falou no nome dos outros líderes partidários. Ideias, o que é que defende o seu partido, o que é que o seu partido pretende para Portugal, fica em segundo plano. E isso pode traduzir uma de duas coisas, em meu entender, e é sempre subjetivo. Mas pode traduzir por um lado uma certa pequenez política, em termos intelectuais, e até uma certa desonestidade política, ou pode apenas traduzir a ideia de que o que importa é eu dizer mal do outro e quanto às ideias, depois, quando estiver no poder, logo vemos como é que fazemos. E de qualquer forma é desonestidade.
E como é que enquadra manifestações de protesto mais extremistas como ações que visam diretamente os candidatos?
Aí eu penso que não há segundas opiniões. Há sempre duas opiniões, há a opinião de quem faz isso e de quem o apoia, mas ao contrário. Isso é nitidamente um ato, por um lado, de cobardia democrática, de cobardia política, como quisermos. E um ato de alguma ditadura do pensamento. As minhas ideias é que estão bem, as tuas não, portanto, toma lá com a tinta pela cabeça abaixo, ou então, como aqui há uns anos largos, agrediram Mário Soares na Marinha Grande, ou agrediram outros candidatos em outros sítios. Não faz sentido também. A sociedade está um pouco encrespada. Eu fui aluno da Católica de Braga, tinha um professor que dizia que quando o estômago está vazio, nem os filósofos filosofam, nem as pessoas são capazes de ser coerentes.
A única razão que há é pegar numa pedra e atirar, e ele dizia isso assim. Eu não concordo com isso, naturalmente, mas o que é verdade é que a sociedade está um pouco nisso, e, portanto, atiram-se lá com a tinta, insulta-se o nome das pessoas, inventam-se, propositadamente ou não, situações, muitas vezes, jurídicas. E eu não sei até que ponto é que muitos dos casos jurídicos são mesmo reais e verdadeiros: A justiça o dirá depois. Não sei se, às vezes, não são instigados por este ou aquele partido que pretende que o partido A, B, ou C vá-se entretendo com os problemas de justiça e, portanto, vá-se descuidando das questões que são fundamentais, que são as questões que têm a ver com a educação, que têm a ver com a saúde, que têm a ver com a alimentação, têm a ver com o alojamento, com a habitação. Esses sim são problemas dramáticos e, se não forem resolvidos, não há justiça, e não havendo justiça não há paz.
Ainda assim, não é mais compreensível a pratica destes atos, quando os seus dinamizadores dizem que se não radicarem o seu protesto não são ouvidos?
As pessoas que pensam assim, ou que dizem isso, por um lado não terão grande espírito democrático. Nós em democracia discutimos, apresentamos os nossos argumentos, que podem não ser ouvidos. Podem ser ouvidos outros, porque têm mais força, têm mais atualidade. É claro que, se eu fosse por aí, eu teria de dar razão aos movimentos radicais que dizem que isto só à lei da bala é que se resolve, mas não é. Tem de ser à lei do diálogo, à lei do argumento, à lei do aceitar o contraditório. E quem não sabe aceitar o contraditório vai pela lei da bala.
Neste caso pela lei da tinta….
Sim, neste caso pela lei da tinta. Agora, o que é fundamental nisto tudo, para nós que estamos ligados à igreja e que somos membros, no meu caso, de uma comissão de justiça e paz, o que é importante é perceber quem são os candidatos que, de alguma forma, têm, defendem aquilo que são os valores do homem visto no seu todo.
A Comissão Justiça e Paz, entre as suas funções, entre os seus objetivos, tem o estudo e a divulgação da doutrina social da Igreja, e eu pergunto-lhe se eleitores e eleitos conhecem os princípios deste pensamento social cristão?
Não. Se eu falar globalmente, não, é claro. Não tenho dúvida nenhuma, e até lhe digo mais, haverá muitos de nós, muito enfarinhados na estrutura das Igrejas locais, que não têm conhecimento dos documentos da doutrina social, que vêm desde Leão XIII e todos os outros. Bastaria para o caso estarem atentos, por exemplo, à ‘Fratelli Tutti’, à ‘Evangelii Gaudium’, às últimas encíclicas onde a doutrina social da Igreja está perfeitamente plasmada; ou então, um documento mais antigo, mas muito interessante, de Paulo VI, a ‘Populorum Progressio’, por exemplo. São documentos onde a doutrina social está muito bem plasmada, e está muito claro: todo homem é meu irmão, começa por aí. Então, se todo homem é meu irmão, como é que eu posso ostracizar judeus ou muçulmanos, ciganos, pretos, brancos ou amarelos? Não posso, não devo fazê-lo. É claro que isso não se incute por decreto, isso trabalha-se desde a catequese, tem de ser trabalhado desde a catequese. Se deixam crescer os homens até aos 20 anos, 20 e tal, sem trabalhar estes conceitos de fraternidade universal, então quando chegam aos 20, 30 anos e têm decisão de votar, a hipótese de votar, são árvores já que cresceram com alguma deficiência, e será mais difícil pô-las direitas. Se quisermos trabalhar isto, temos de começar já na catequese, e então, talvez daqui a uns 15, 20 anos, tenhamos uma sociedade mais fraterna e, portanto, menos afastada das decisões políticas. As pessoas esquecem que ser político é mesmo isso… eu estou preocupado com tudo o que tem a ver com a minha cidade, eu estou preocupado com tudo o que tem a ver com a minha aldeia, com a minha envolvente.
Os temas da pobreza e da exclusão deveriam merecer uma maior atenção e propósitos mais firmes por parte de quem se apresenta como candidato à Assembleia e também ao Governo?
De todos os políticos.
Não estranha que o tema da pobreza tenha passado à margem?
Como é que pode haver uma sociedade justa quando há pessoas que, antes de sair a cabeça do ventre materno, saiu a mão aberta à caridade? Não pode haver justiça social… eu nasci, não pedi para nascer, mas nasci, estou feliz por ter nascido, mas desde pequenino, desde o berço já, eu só sobrevivo se alguém caritativamente me der de comer, porque eu não vou ser capaz de forma alguma de ganhar o meu próprio sustento. Isto é a ausência da dignidade, da própria dignidade da pessoa em termos sociais. Portanto, se eu me sinto à margem de tudo, se para sobreviver tenho de comer as migalhas que caem da mesa dos outros, eu tenho duas hipóteses: posso encostar-me na berma do passeio, à espera que me deem de comer ou de morrer; ou posso reagir e entrar em luta com a própria sociedade onde me insiro, posso tornar-me, inclusive, um marginal, no sentido de que eu não concordo com esta sociedade, estou à margem dela. Daí que a Igreja tenha de, continuamente, batalhar neste ponto, os nossos bispos têm de batalhar neste ponto e têm, provavelmente, de pôr o dedo na ferida e dizer aos políticos: olhem para a questão da pobreza, porque essa é fundamental.
Aliás, a mensagem do Papa Francisco, desde que foi eleito, é: vamos estar atentos aos pobres.
Outra mensagem fundamental do Papa Francisco tem a ver com a atenção aos migrantes e refugiados. O tema da imigração, que acaba por entrar na campanha atrás de declarações mais ou menos polémicas, não vamos comentar essas declarações, mas pergunto-lhe se sente que em Portugal continua a faltar uma verdadeira política de integração?
Claro que falta. E tanto que falta que nós, de repente, vamos descobrindo focos de escravatura em várias partes do país. Que me envergonham, estive há 15 dias na Guiné e soube de coisas que aconteciam com guineenses cá em Portugal – já estou a tentar dar andamento ao processo – que fico envergonhado com isso. Pessoas que, numa casa onde para seis pessoas, vivem 20 ou 30. Há duas coisas aqui que me parecem importantes: os países não podem fechar a porta aos imigrantes, àqueles que fogem às guerras, que fogem à fome, fogem ao desemprego; mas também não podem, em meu entender, abandoná-los. “Desenrasquem-se”. Não podem. É preciso uma real política de integração dos imigrantes na nossa sociedade.
E na região aí, encontra problemas de integração idênticos, por exemplo, àqueles que são noticiados, em particular no Alentejo?
Que se saiba, não acontece tanto isso. Há muitos imigrantes, muitos mesmo, essencialmente brasileiros, mas não só. Também indianos, paquistaneses, há muitos. A Comissão de Justiça e Paz está agora, este ano, vamos tentar fazer um levantamento, perceber, em termos de diocese, se há alguns problemas desses. Que se saiba, não temos problemas desses com a gravidade daqueles que acontecem no Alentejo e noutros sítios. Também não temos tantos imigrantes quanto tem o Alentejo, ou Algarve, ou outras zonas do país. Também é verdade…
Vamos olhar para o território do Alto Minho, também para lhe fazer esta pergunta. Em Viana, com a nova distribuição dos círculos eleitorais, houve a perda de um deputado. A representação dos interesses da população fica menos assegurada, assim?
Havendo mais deputados, em teoria, há mais vozes a defenderem os interesses da região. Mas vou-lhe dar uma resposta que eu ouvi um dia destes: “menos um deputado? até podia ficar só um, que chegava, custava menos ao Estado, assim como assim eles não fazem nada”. Não é verdade.
Mas é um discurso populista…
É. Não é verdade isto. Mas é o discurso que este tipo de política está a gerar, e não é verdade. Os deputados são necessários. Portanto, nesta perspetiva, é claro que perdemos.
Espera que das próximas eleições surja um quadro político capaz de assegurar a estabilidade governativa ou poderemos estar perante uma crise política nos próximos meses?
Tenho muito medo do empate técnico. Tenho muito medo.
Mas porquê?
Porque pode acontecer um charco, durante uns meses. Tenho muito medo disso. E o nosso país, em meu entender, não sou economista, mas não tem uma estrutura que lhe permita viver meses sobre meses sem uma liderança política. Então tenho algum medo disso. Tudo aponta para que isso possa acontecer, que haja um empate técnico entre a AD e o PS. Vamos ver. É claro que, já se fazem contas, já se dizem que a esquerda, juntando todos os partidos menos o PAN, poderia equiparar a direita sem o Chega. É complicado. Eu tenho medo do empate técnico, tenho muito medo.
Não gostaria que houvesse uma maioria absoluta, mas também tenho muito medo do empate técnico. Quando estava na tropa, nós dizíamos “esquerda direita 1, 2; esquerda direita 1, 2” e alguém dizia, em tom de brincadeira: “no Brasil diz-se, faz que anda, mas não anda”. Tenho muito medo disso, do que “faz que anda, mas não anda”.