A cruz escondida

“Há beleza lá fora…”

Nour e Ghazel são duas crianças que vivem prisioneiras de um mundo que colapsou. Como as ruas são ainda uma ameaça, vivem fechadas em casa, numa casa onde falta quase tudo. Por isso, para elas, é muito bom quando podem sair a caminho da Igreja, a caminho, por exemplo, dos campos de férias. É como se todas as janelas se abrissem e elas pudessem descobrir que há beleza no mundo além das ruínas da sua rua…

Nour Salmo e Ghazel são duas raparigas, duas meninas que praticamente viveram toda a vida no meio da guerra. Na Síria é assim. A guerra começou há 12 anos e ainda parece não ter acabado. Nour Salmo tem um ar engraçado. É uma rapariga adolescente que gosta de tocar música, especialmente instrumentos de sopro. Ghazel é mais pequena, passa o tempo a desenhar à janela. Muitas vezes faz corações nas folhas de papel, como se os desenhos tivessem poderes mágicos e pudessem contagiar pessoas de verdade. Ela desenha quase sempre à janela porque também quase sempre falta a electricidade em casa. É assim na Síria desde há vários anos. Falta a electricidade, falta trabalho, falta comida, falta esperança… É neste mundo que vivem Nour e Ghazel, duas crianças que aceitaram contar as suas histórias para uma equipa de reportagem da Fundação AIS.

O sonho da música

Nour e Ghazel vivem num bairro que é quase um destroço. A guerra está presente em todas as esquinas, em todas as ruas, em todos os lugares. A guerra transformou a Síria por completo. Todos mudaram. Até os mais pequenos. Muitas crianças aprenderam a brincar nos entulhos das casas que colapsaram com os bombardeamentos, casas que não resistiram às batalhas furiosas que se travaram em inúmeras cidades e vilas e aldeias da Síria. Mas Nour e Ghazel passam quase todo o tempo fechadas em casa. Têm medo de ir para a rua, para junto dos seus amigos. As ruas são ainda um lugar perigoso, uma armadilha, e elas aprenderam a não arriscar. “O tempo que estamos a viver não é nada bom. As crianças da minha idade e da Ghazel não têm nada para fazer. Nem sequer podemos sair para brincar na rua por causa dos raptos. Também podemos aprender coisas más na rua…” As palavras saem-lhe com simplicidade. Ela olha para a câmara e sorri e diz que gosta de tocar.  “Gosto muito. Exprime os sentimentos das pessoas.” E pega num trompete e mostra como se faz. Os sons saem desalinhados, mas ela não se importa. Ainda está a aprender.

“A vida não é feia…”

Mas entre o sonho e a realidade há um mundo imenso. Num país onde falta quase tudo o que é essencial, os instrumentos musicais são uma preciosidade, algo de muito caro, algo impossível para o magro orçamento da família. Resta a estas duas meninas, os instrumentos que existem na paróquia. É de lá o trompete com que ela ensaia em casa, e é lá, na igreja, que ela e os amigos aprendem alguma coisa. Mas o mais importante, pelo menos o mais saboroso que encontram na Igreja não é a música mas sim os campos de férias. Aí tudo se transforma. Até o rosto de Nour quando nos conta como é bom quando viajam no velho autocarro para os campos organizados pela paróquia. “Quando vamos para o campo”, diz já empolgada com as próprias palavras, “a primeira coisa que sentimos é que algo mudou em nós, que a vida não é sempre deprimente ou feia. Há beleza lá fora e isso aproxima-nos de Deus…” Os campos de férias de que fala Nour são patrocinados pela Fundação AIS. Só neste ano de 2023 quase 11.600 crianças puderam participar nestas iniciativas da Igreja, puderam brincar umas com as outras, puderam rezar em conjunto, puderam perceber que há vida para além da guerra. Ou, como disse tão bem Nour Salmo, “há beleza lá fora”. Às vezes basta tão pouco para fazer alguém feliz…

Paulo Aido

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Agência ECCLESIA

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