Homilia do Bispo do Porto na Vigília Pascal

Amados irmãos e irmãs, caríssimos catecúmenos: – Que poderemos dizer ainda e acrescentar, depois de tanta lição bíblica, resumida a história da nossa salvação? Pouco, na verdade, tão eloquentes foram as palavras ouvidas e as orações rezadas, tão sugestivos os gestos litúrgicos que iluminaram a nossa catedral e ainda mais as nossas consciências e corações. Mas alguma coisa direi, apesar disso. A todos os que aqui estamos, com especialíssima referência aos que vão ser baptizados. E em torno do Precónio pascal, que não poderia ser mais esplendente de verdade, da verdade fundamental da ressurreição de Cristo. Mar Vermelho poderia ser apenas o de Moisés com o seu povo, atravessado há tantos séculos atrás… Mas o Precónio vê-o a outra luz e em contraste com outras sombras, que já não são as dos exércitos do faraó, mas as do pecado e cegueira espiritual. Como o ouvimos: “Esta é a noite, em que a coluna de fogo dissipou as trevas do pecado”. Trevas do pecado… Sim, irmãos, da cegueira espiritual de quando não quiséssemos ver, nem sequer à não verdade ou mentira completa em que se tornasse a nossa vida. É antiga a frase, mas não menos actual, tristemente actual: “quem não vive como pensa, acaba por pensar como vive”. Verdadeira como estoutra: “a decadência também tem a sua lógica”. Triste lógica de quem procurasse extinguir o que lhe resta de luz, apagando-a ainda mais em escuridão impenetrável. – Esta noite é mais para falar de luz! Mas sem esquecer que, depois da primeira luz em que o mundo foi criado, cantamos uma nova luz, em que ele mesmo foi recriado. E esta, irmãos e irmãs, brilha sobre outras trevas, que não são as iniciais e ingénuas da primeira criação, mas as acumuladas por muita anti-criação, infelizmente acrescentada. Quando Deus criou a luz, nada lhe custou senão querê-lo; mas, para que a luz rebrilhasse nesta noite santa, foi-Lhe preciso atravessar as trevas densíssimas da morte que o pecado originara. Não o esqueçamos nunca, para o agradecermos sempre: o Ressuscitado é o Crucificado, refulge-lhe gloriosa a cruz, brilham-lhe salvadoras as chagas. Não o esqueçamos todos, e muito especialmente os que se abeiram da água do Baptismo. A história da salvação, de que lembrámos os essenciais momentos, está concluída em Cristo e, no seu Espírito, é-nos oferecida a todos. Mas cumpre-nos acolhê-la persistentemente, para que, com a Palavra e os sacramentos, vá dissolvendo muita sombra persistente que ainda nos retém na antemanhã do dia. A água novíssima do Baptismo brota nos nossos corações como uma fonte divina, “para a vida eterna”. Por isso mesmo é sacramento irrepetível. Mas cada um dos que renovaremos nesta vigília as promessas baptismais sabe certamente que não lhe é fácil – a essa água do Espírito de Cristo – cumprir em nós toda a promessa da sua novidade, toda a irradiação da sua luz. Nem em nós, nem no ambiente e na mentalidade que integramos. Deixai-me concretizar com a grande rarefacção cultural que se verifica em torno da Páscoa. É muita a dificuldade dos comunicadores sociais, por exemplo, em acertarem com o tema pascal na sua essência, ficando-se em geral no acidental ou insignificante. Da Primavera às amêndoas e das amêndoas aos ovos e por aí fora… E da própria Igreja, que transporta a memória viva da Páscoa de Cristo, mais facilmente se retiram a cenografia do que a liturgia propriamente dita, alguma dissonância do que a afirmação essencial e comum, algum pormenor do que o acontecimento em si mesmo. Mais complexo ainda seria o caso de nós próprios, crentes que nos dizemos e queremos, darmos pouca importância e comparência – de corpo e espírito – à celebração pascal, ficando-nos mais pela ocasião festiva e exterior, de convivência e folga. E o caso é que, se já é difícil passar o autêntico sentido do Natal, da incarnação de Cristo, Deus connosco realmente, mais difícil será transmitir o da Páscoa, vida ressuscitada de Cristo, essência da nossa fé. Há muito a fazer e refazer neste ponto, em premente “nova evangelização”, nossa e alheia! Felizmente, muito felizmente, estamos aqui esta noite, caríssimos irmãos. E nem foi precisa muita imaginação para atravessarmos todos os mares necessários, desde que guiados pela coluna do fogo divino. Por isso e só por isso, já aqui mesmo chegastes, já muito longe enxergais, dentro e fora do vosso universo. Cantou de seguida o Precónio a vida nova dos baptizados, como luminosa torrente de graça: “Esta é a noite, que liberta das trevas do pecado e da corrupção do mundo aqueles que hoje por toda a terra crêem em Cristo, noite que os restitui à graça e os reúne na comunhão dos santos”. Estaremos então conscientes do absoluto contraste entre corrupção do mundo e comunhão dos santos. O mundo é bom como criação; mas, deixado a si mesmo, corrompe-se, quando se corrompe primeiro o homem, que antes lhe deveria nomear as coisas, para lhes dar sentido. Infelizmente, em vez de as nomear com linguagem aprendida de Deus, acontece por vezes desnomeá-las, alterando o sentido das palavras mais belas e desvirtuando o efeito que poderiam ter. Vida e morte, juventude e velhice, casamento e amor, liberdade e verdade: quantas acepções divergentes e até contraditórias acabam por anular-lhes a nomeação, redundando tudo em insignificância geral, contrafazendo a criação e dificultando gravemente a civilização, ou seja, a vida em comum sobre uma base única de humanidade geral e responsável. É óbvio que, avançando a história, a realidade se torna mais complexa; mas complexidade não pode significar desistência de valores comuns, esses mesmos que a própria evolução decanta e confirma. Mas o Precónio cantou outra realidade, mais compensadora e subida, a comunhão dos santos. Na verdade, onde há pecado e egoísmo, não haverá lugar para os outros e o mundo extingue-se por não-convivência. Mas onde os outros continuam a valer, abre-se a comunhão dos santos, em que a vida circula e a unidade acontece. Deixemo-lo ressoar: “Esta é a noite, que liberta das trevas do pecado e da corrupção do mundo aqueles que hoje por toda a terra crêem em Cristo, noite que os restitui à graça e os reúne na comunhão dos Santos”. Crer em Cristo, como felizmente nos acontece, é integrar uma família onde todos cabemos por nos unir no essencial, isto é, na palavra de Deus, que tudo cria e recria. Nascemos, naturalmente, segundo o sangue e a terra, segundo a gente e a cultura. Basta para nascer, mas não chega para ultimar. Ultimamo-nos sim num nascimento mais alto, na paternidade divina que a todos acolhe, nas imensas moradas em que todos são esperados. Esta família, inaugurou-a Cristo no mundo, com uma declaração a reter: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8, 21). – Queridos catecúmenos, porque acolhestes a Palavra de Deus e estais dispostos a pô-la em prática, integrareis a família de Cristo e a comunhão dos santos. E oxalá que igual disposição e prática concreta nos permita, aos já baptizados, dizer-vos com propriedade e coerência: “Bem-vindos!”. Sirva-nos a todos, de penhor e estímulo a luz purificadora desta noite salutar. Cantava também o Precónio: “Esta é a noite, em que Cristo, quebrando as cadeias da morte, Se levanta vitorioso do túmulo”. Precisamente irmãos, catecúmenos e baptizados, é de morte e vida que se trata, nada menos do que isso e tudo novo a partir daí. Ganhemos nesta santíssima vigília, plena de ressurreição e de Espírito, a consciência certa de que o cristianismo que integramos não é algo mais a acrescentar ao que já havia ou ainda perdura, naturalmente falando. – Absolutamente não! Trata-se de novidade inteira, outra vida, outros hábitos e critérios, outras atitudes fundamentais e práticas. Assim o entenderam os primeiros que o viveram, percebendo bem que o convite de Jesus era geral, na particularidade de cada um: “Jesus disse, então aos discípulos: ‘Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la” (Mt 16, 2425). Com Cristo, levantamo-nos vitoriosos do túmulo em que a nossa vida ficaria se o não encontrássemos lá, quando fez sua a nossa morte para nos dar a sua vida. Vida de filhos de Deus, que só Cristo nos poderia dar, por ser unicamente sua. Vida de irmãos, seus e de todos, no Espírito de comunhão universal, que só de Deus pode porvir. Morte e vida, o sacramento desta noite, que imediatamente foi compreendido e explicado por São Paulo, em frases de fogo, como as ouvidas: “Todos nós que fomos baptizados em Jesus Cristo fomos baptizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Baptismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova. […] Assim vós também. Considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus” (Rm 6, 3 ss). Entendemos certamente o essencial: baptizados – que somos ou seremos dentro em pouco – já não temos vida que não seja com Cristo, morrendo por isso em nós tudo o que não era seu. Agora, cresce-nos na alma e em todas as concretizações da existência exactamente e só aquilo que não morre mais, a caridade de Deus. – Vida verdadeira, esta, que custou a Deus Pai e entrega do Filho, para nos vir buscar onde jazíamos; e nos faz cantar de novo com o Precónio pascal: “Oh admirável condescendência da vossa graça! Oh incomparável predilecção do vosso amor! Para resgatar o escravo, entregastes o Filho!”. Tudo está aqui presente, nesta esplendorosa noite: o amor criador do Pai, que nos recupera em Cristo, renovando-nos como filhos no Filho, no seu Espírito filial. Daqui a pouco, queridos catecúmenos, direis pela primeira vez, com inteira verdade, a oração dos filhos de Deus, o Pai Nosso. – Que a vossa frescura e convicção nos contagiem a todos, para uma Páscoa sempre reencontrada. Essa mesma porque o mundo espera. Disse-o também S. Paulo: “Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus!” (Rm 8, 19). E que a luz da manhã que se avizinha tenha em cada um de nós o seu renovado esplendor! Sé do Porto, 22-23 de Abril de 2008 + Manuel Clemente, Bispo do Porto

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