CIBERCULTURA – Que impacte terá a Laudate Deum na Tecnopolia?

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Quando era jovem, havia apenas um computador lá em casa ligado à electricidade para fazer trabalhos e jogarmos. Depois de 1995, passámos a ter internet e além dos trabalhos e jogos, incluiu-se a navegação pelo mar cibernético da web através do Netscape. E ao pensar agora nessa transição dou-me conta de como o computador passou a estar mais tempo ligado lá em casa. Nesta altura, longe de mim estava a noção de que — «Considerando o total líquido das emissões desde 1850, mais de 42% ocorreu depois de 1990.» (Laudate Deum, 11) — depois da internet. Hoje, 28 anos depois, não tenho apenas um computador ligado à corrente, mas mais do que um, assim como os telemóveis de todos em casa, quaisquer outros dispositivos e o mesmo imagino ter acontecido com outras famílias. O desenvolvimento tecnológico aumentou exponencialmente a necessidade de consumirmos energia. E tudo isso teve/tem um preço.

Foto de Karsten Würth em Unsplash
Em Julho de 2023 registámos a temperatura mais elevada dos últimos 174 anos. Os furações intensificam-se porque as alterações climáticas retêm mais calor que serve de “combustível” a esses e outros fenómenos atmosféricos, tornando-os mais extremos. Podemos ter um dilúvio em Espanha e no país ao lado, em França, sofre-se de seca. Algumas regiões do nosso planeta podem tornar-se inabitáveis gerando migrações de pessoas e o panorama com o degelo dos pólos não é animador. Há anos que os cientistas alertam para estes eventos, mas as pessoas continuam a precisar de energia para carregar os seus dispositivos, combustível para acelerar e chegar depressa ao seu destino e a desejar cada vez menos fricção entre a ânsia de consumir e a recompensa pelo acto. Gaia;, como na hipótese lançada pelo cientista James Lovelock do nosso planeta como organismo, não está doente (como por vezes se diz), mas faz o que qualquer organismo faz: adapta-se.

O Papa Francisco com a nova Exortação Apostólica “Laudate Deum” (LD) convida-nos a parar e tomar consciência do rumo que estamos a seguir. Oito anos depois da Laudato Si’, nos grupos internacionais em que participo, continuo a escutar de várias partes do mundo existirem bispos, padres e leigos que não leram ainda essa Carta Encíclica. Somos mais de mil milhões de católicos no mundo, mas uma pequena fracção aderiu, por exemplo, à Plataforma de Acção Laudato Si’. Se o Papa retoma este tema numa Exortação Apostólica é pelo facto de ser um assunto sério e estar directamente relacionado com a nossa vida em Deus e com a Nova Evangelização. Em última instância, o relacionamento com o planeta seria expressão do nosso relacionamento com Deus. Por isso, quem descuida do relacionamento com o planeta enquanto valoriza o seu relacionamento com Deus, vive um antagonismo, quer tenha, ou não, consciência disso e evangeliza pouco.

Com o progresso tecnológico, as pessoas sentem que o seu estilo de vida progride também. Somos quase 8 mil milhões de seres humanos que querem melhorar, legitimamente, o seu estilo de vida. Ninguém pode negar como essa melhorar está a gerar um consumo fast-food de energia que apenas os combustíveis fósseis conseguem saciar e gratificar “instantaneamente”. A ciência há muito que alerta para este problema e daí que o Papa tenha incluido o tema da transição energética na Laudate Deum. Mas reconhece que —

«As propostas tendentes a garantir uma transição rápida e eficaz para formas de energia alternativa e menos poluente não conseguiram fazer progressos.» (LD 49)

Os políticos têm sido excessivamente lentos a reagir e débeis no cumprimento dos compromissos que assumem e daí que o Papa tenha incluido o tema do próximo COP28 nos Emirados Árabes Unidos.

«Se temos confiança na capacidade do ser humano transcender os seus pequenos interesses e pensar em grande, não podemos renunciar ao sonho de que a COP28 leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser monitorizados de forma permanente.» (LD 54)

Partilho do optimismo do Papa, mas realisticamente, temo que a inércia política seja tão grande quanto a inércia térmica do planeta. Isto é, se levaram muito anos a chegar onde chegámos em termos do clima e, por isso, serão precisos tantos ou mais anos para alterar essa situação, temo que aconteça o mesmo com a vontade política. Se a Laudato Si’ não atingiu sequer o coração de alguns católicos, de tal forma que o Papa Francisco diz —

«Vejo-me obrigado a fazer estas especificações, que podem parecer óbvias, por causa de certas opiniões ridicularizadoras e pouco racionais que encontro mesmo dentro da Igreja Católica.» (LD 14)

— o que me garante que a Laudato Deum faça qualquer efeito? Onde prevejo que a LD produza mais impacte será na consciência pessoal de que vivemos num mundo cada vez mais cibercultural e reconhecer, como faz Francisco, que o paradigma de vida tornou-se essencialmente tecnocrático, isto é, dominado pelo poder da tecnologia que — «alimenta-se mostruosamente de si próprio.» (LD 21).

Em 1992, Neil Postman publicou um livro provocante (não traduzido para português) sobre a “Tecnopolia: A rendição da Cultura à Tecnologia”. Numa Tecnopolia, a tecnologia não é apenas uma ferramenta ou um meio para atingir um fim. Em vez disso, ela define a estrutura de pensamento e os valores da sociedade. A lógica e a eficiência tecnológicas tornam-se o padrão pelo qual tudo é medido e avaliado, muitas vezes à custa de outras considerações humanas e culturais. A tecnologia não é apenas vista como benéfica, mas também como necessária e inevitável, e qualquer crítica ou resistência a ela é frequentemente vista como retrógrada ou irracional. Para resistir à Tecnopolia, Postman convida-nos a sermos lutadores de uma resistência amorosa, isto é, pessoas que mantêm junto do seu coração as narrativas e símbolos que vitalizam a esperança de não sermos dominados por aqueles que dominam a tecnologia. A Laudate Deum inspira-nos a sermos este tipo de lutadores pacíficos, mas activos.

Alguns poderão pensar que o Papa não devia usar estes instrumentos pastorais para abordar questões de natureza científico-tecnológica e social, mas preocupar-se mais com o amadurecimento da fé das pessoas. Permitam-me a pergunta: o que será viver a fé sem haver um encontro com a verdade?

Se o meu estilo de vida influi sobre o clima e isso afecta o meu irmão em Cristo e em humanidade que não tem os recursos de ar condicionado que tenho, significa ter sido incapaz de ver nele que sofre a presença de Jesus. Existem espécies que sofrem também, e se acredito que são Obra do Criador a quem chamo Pai, se for insensível a esse sofrimento significa ser superficial na minha fé. A Laudate Deum é um apelo a não termos medo da verdade e um convite a sairmos do conforto dos estilos de vida que nos desligam daquilo que se passa à nossa volta.

Existe apenas algo que não compreendi. Depois de reconhecer « o valor peculiar e central do ser humano no meio do maravilhoso concerto de todos os seres», o Papa diz que «hoje somos obrigados a reconhecer que só é possível defender um “antropocentrismo situado” (LD 67). E com essa expressão pretende «reconhecer que a vida humana não se pode compreender nem sustentar sem as outras criaturas. » Ou seja, não vivemos isolados do resto da criação, mas chamar a isto de “antropocentrismo” é um retrocesso de linguagem. Talvez houvesse uma outra expressão inspirada no final deste ponto 67 que retoma a Laudato Si’ n.89 —

«De facto “nós e todos os seres do universo, sendo criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele a um respeito sagrado, amoroso e humilde”».

Este ponto trouxe-me à memória uma ideia que introduzi em 2008 na revista Brotéria;. Será que poderíamos antes reconhecer que só um communiocentrismo amplia o sentido e significado da realidade da comunhão como aspecto fundacional da Ecologia Integral?

Laudate Deum é uma exortação à consciência porque — «não há mudanças culturais sem mudanças nas pessoas» (LD 70) —, mas também à esperança através das famílias, pois — «os esforços das famílias para poluir menos, reduzir esbanjamentos, consumir de forma sensata estão a criar uma nova cultura.» (LD 71). Uma cultura onde podemos ter todos os dispositivos carregados, mas desligados, de modo a libertar o olhar para poder contemplar o mundo à procura daquilo que Deus vê.


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