Natal na Literatura Portuguesa

1.Desde os cancioneiros medievais até nos movimentos das primeiras décadas do século XX, passando por Camões e os grandes escritores de Oitocentos, para culminar na agónica singularidade de José Régio e Miguel Torga, o Natal foi tema maior da literatura portuguesa – expandindo-se da poesia lírica e do teatro para os vários géneros da ficção narrativa (com compreensível evidenciação do conto) e recebendo modulações muito diversas, a partir da piedade originária. Aparentemente, tal quadro de frequência e perspectiva não desapareceu na literatura contemporânea. De facto, em contraste com a declinante atracção que nos últimos decénios se vem manifestando em relação à Páscoa, e sobretudo em relação ao seu alcance soteriológico e escatológico, é ainda com grande frequência que o Natal comparece como fecundo motivo na poesia e no conto, na crónica memorialista ou impressionista. Porém, são insofismáveis os indícios de que muitas vezes essa tematização do Natal visa propiciar efusões e efeitos de realização humana já desprendidos da religiosidade confessional, se não mesmo destítuidos do sentido do sagrado. No entanto, nem sempre ocorre essa desvinculação espiritual. Uma literatura de afectos, por vezes fácil, outras vezes instrumental, mas outras tantas aprofundando a fenomenologia da condição humana, desenvolve-se aí com continuidades e inflexões em torno dos factores propiciatórios do conforto anímicos, da compensação nostálgica, da reanimação das esperanças – mais raramente, da refundação da virtude teologal da Esperança. A tendência dominante parece ser a de um esbatimento, se não alheamento, da questão salvífico-religiosa; mas em certos textos ou fulgura o reencontro esclarecido e edificante com o Redentor, ou sentimos a alma pós-moderna vivendo numa espécie nova de limbo, tão bem expressa pelo mais subtil dos actuais poetas de espiritualidade profunda, Fernando Echevarria: «estar sendo/antes ainda de haver epifania». 2.Tal é a força da temática da Natividade de Jesus e dos círculos concêntricos da Consoada que nem a ruptura revolucionária dos anos 70 suspendeu a sua exploração literária, nem evitou que novos organismos estatais, como o F.A.O.J., promovessem novos antologias (cf. Textos para o Natal, Cadernos F.A.O.J., Nº11, 1979, com textos de Agustina Bessa Luís, Alçada Baptista, Almeida Faria, Ana Hatherly, David Mourão-Ferreira, Fernando Assis Pacheco, José Cardoso Pires, Mário Cláudio, Miguel Torga, Nuno Bragança, Sophia de Mello Breyner Andresen e Vergílio Ferreira), tal como pôde ocorrer com grémios de autores sob patrocínio de Governos regionais (cf. O Natal na voz dos poetas madeirenses, ed. da Associação de Escritores da Madeira, org. de José António Gonçalves, com poemas de Cabral Nascimento, Herberto Hélder, Irene Lucília, José Agostinho Baptista, José Tolentino Mendonça, A.J. Vieira de Freitas, António Aragão, Alfredo Vieira de Freitas, Carvalho Jordão, Carlos Nogueira Fino, Dalila Teles Veras, Florival de Passos, João Carlos Abreu, etc.). No último quartel do século surgem, como no precedente (pela mão de V. Nemésio, de Azinhal Abelho, etc.), antologias globalizantes sobre Natal na Poesia Portuguesa (melhor exemplo, com esse título, o florilégio seleccionado em 1987 por Luís Forjaz Trigueiros) ou Natal na novelística portuguesa (melhor exemplo, com esse título, a antologia publicada em 1978 pela Ed. Arcádia, com narrativas de Afonso Botelho e Agustina, de Álvaro Manuel Machado e A. Alçada Baptista, de David Mourão-Ferreira e Domingos Monteiro, de Fausto Lopo de Carvalho e Fernanda Botelho, de João de Araújo Correia e João Maia, de José Martins Garcia e Luís Cajão, de Mário Braga e Miguel Torga). Surgem também livros consagrados, no todo ou em parte, a essa temática por autores singulares – desde o Cancioneiro de Natal(1971) de David Mourão-Ferreira e o Retábulo para um íntimo Natal(1980) de A.M.Couto Viana até ao Longa Noite, Novo Dia de António Sousa Freitas, dos Contos de Natal(1964) de Domingos Monteiro e do Natal(1966) de João Araújo Correia, até à Infância do que nasci de Natércia Freire, ao Cancioneiro de Cabral Nascimento, etc.. Coma maior ou menor especificidade religiosa, o Natal inspira poemas e narrativas ainda a Tomaz Kim e Jorge Barbosa, a Daniel Filipe e a Merícia de Lemos, a Miguel Trigueiros e Vasco Miranda, a António Gedeão e Sophia Andresen, a Urbano Tavares Rodrigues, e Natália Nunes, a Amândio César e Manuel Boaventura, etc.. 3. Talvez seja oportuno lembrar como, de meados do séc.XX em fora, alguns dos maiores poetas das várias tendências do nosso Neo-Modernismo celebraram a sua relação com a Natividade de Jesus em equação com os tempos e os contextos em que lhes foi dado viver e escrever. Redimensionando os temas ancestrais da morte e do amor nesse grande «teatro de Deus» que é a vivência do mundo como rede amorosa entre os homens e as coisas, Ruy Cinatti exprime intensamente a condição cristã («A minha fome de Deus/…/ é Cristo crucificado,/ que no mundo,/ nos abençoa na vida/ e nos perdoa o pecado») e, a essa luz, sagra com o «Natal» as vicissitudes da experiência íntima e interpessoal: «Inverno lactescente, adormecido/Querer, noite encantada, / Já não sinto, porém, aquele amor, / Nem a vida sonhada/ Tudo se foi, pouco nos resta, /Ilhas não há, montanhas só no espírito/ Se elevam, distantes e coroadas/ Pela solidão. / No muro da minha alma há uma fresta. / Por ela entra o vento e a multidão/ Das vozes e dos signos. /Quando a certeza chega, o coração/Lança de si os trajes mais indignos/ E entra, sorrindo, na festa». Depondo da mesma matriz de inquietação metafísica latente nos escritores dos Cadernos de Poesia, a lírica de Tomaz Kim contempla os embates dos acenos da fé com a amargura agnóstica na ponderação, entre sibilina e augustiniana, do segredo do Tempo. Mas, justamente nos seus extraordinários Exercícios Temporais, o espírito não se exime, em signo de Natal, de reagir à desencaminhada concretude das circunstâncias históricas e dos poderes conjunturais em nome do advento do Menino que é afinal o Senhor da Vida e o Senhor da História: «Eis aqui a estalagem:/Escassa a palha na manjedoira/E morno o bafo dos animais. //Brilhante a estrela/Brilhante o brocado/Dos Reis. //Oh, o fulgor, até, dos farrapos/Dos Pastores! /Claro o silêncio:/Um murmúrio a prece/Na noite clara/De Graça plena. //Mas longe, longe….tão perto, / Afinal, /Que uivo de mau agoiro/A prometer o estupro do Sol/E a sombra da carne viva/No chão/ Gravada? //Tão negra a noite, / Agora, /Ó, Senhores do Mundo, /Tão nua de Graça, /Agora, /A noite – a noite e os dias…» Se, como sumularmente disse Fernando J.B. Martinho, a poesia de Sebastião da Gama, vencidas as «dúvidas» e «descrenças», esquecido o «azedume», conhece em «Maré Alta» a «Luz» de Deus e a ela se entrega no júbilo da sua «carne feliz», nessa poesia de diálogo a Virgem e o Menino surgem naturalmente como destinatários intratextuais da fala franciscana. Assim é, por exemplo, nos poemas «Lá fora é que sim» ou «Presépio» de Pelo sonho é que vamos. É sobretudo em torno do Natal que emerge um dialéctica de incerteza e Esperança entre os «Contrapontos» fundacionais da obra poética de David Mourão-Ferreira. Não é gratuita, nem fácil a predisposição para a virtude da Esperança que ascende nessa Obra Poética; nem o seu reino é redutível à imanência social ou psicossensível. Ela pressupõe a catarse da desvalia no Humano e o despojamento propiciatório do Encontro salvífico – para que «o fogo nasça» e «seja Natal e não Dezembro». Nesse combate vale, com a piedade enxuta de um entendimento não-devocional da comunicação dos santos, a interferência dos que já venceram a morte – mormente da «filha que não morreu» e que, a caminho da Parusia, «Vem ilibar[-nos] de toda a culpa», refazer os laços amorosos e «velar-nos no alto céu» («Segunda Elegia de Natal»). Mas o Mediador, e por isso o sustentador dessa comunicação dos santos, só pode ser o Jesus Cristo cujas «mãos aladas» marcam as tábuas da cadeira a que se senta, na mesa da espiritual e humaníssima consoada, essa «filha que nasceu morta». E o Natal, iluminado pelo memorial do nascimento de Jesus Cristo, é o tempo por excelência da refundação do ser na superação sagrada do mal e do nada.Sempre imune à dessacralização e à redução pitoresca, sempre actuante como religiosa refontalização e, por isso, como recolocação para o exame de consciência pessoal e para o implacável exercício da consciência crítica perante a circunstância histórico-social, a celebração da Natividade de Jesus constitui-se em carisma que sela a periódica revisão da vida («Blasfémia de Natal» ,1973). Na Obra Poética de David-Mourão-Ferreira é decisivo que periodicamente, com a exigência de «Natal na Alma», o discurso de relação com o Mundo e com o Tempo se recentra em e por Jesus. Reconhecendo que tudo se reconverte em Cristo, e que, por isso, as sociedades contemporâneas sofrem «a grande pausa/ de recearmos» assumir a Sua existência («Coro de Natal» 1973), a poesia de David Mourão-Ferreira desloca, por 1967, a inspiração da Natividade de um ciclo da nostalgia para outro ciclo da instrumentalização crítica, mas mantendo Jesus como critério e instância de juízo e apelo perante a inautenticidade e a ignomínia (basta ver o remate de «Natal up-to-date»). Além disso, desde 1970 essa inspiração aprofunda-se num ciclo de reconversão, problemática em mais de um aspecto e por mais de uma vez, mas iniludível, porque na íntima celebração do Natal de Jesus «logo o nada/deixa de estar em tudo como estava» («Nada/Natal»). Poesia que parece distrair-se e alhear-se espaçadamente do enlace entre o humano e o divino (abandonando a vivência desse enlace como aliança), o lirismo de David Mourão-Ferreira retorna periodicamente dessa diversão e recentra(-se) na identificação com o Verbo(que em Cristo é Pessoa e relação vivificante). Assim, uma Obra Poética que, ao despojar-se de referêncioas cultuais e confessionais, de alardes devocionais e de pesadumes doutrinais, pôde arrastar leituras autorizadas para a generalização de um espírito de imanência, polariza-se num dos mais autênticos textos de Fé da lírica portuguesa: o poema tão bem intitulado «Confissão de Natal»(1985), onde a divina Transcendência é vivida como Presença a um tempo íntima e remota e onde a experiência religiosa se consuma na relação profunda e intransmissível da pessoa humana com a Pessoa de Jesus Cristo, numa identificação tão fundacional quanto a compreensão (em sentido etimológico e gadameriano) do Nome no nome: Vive o Teu Nome no meu nome Eu sou David mas de Jesus Daí a sede mais a fome Da tua Luz Vive o Teu Nome no meu nome Não por acaso ó meu Jesus É no que a todos mais escondo Que vives Tu A vivência religiosa é decisiva na poesia de António Manuel Couto Viana, mas como lirismo de espiritualidade anti-farisaica, que se eleva a custo sob o impulso do arrependimento, às mãos com o peso do desejo libidinoso ou do cepticismo (traduzido por vezes, na ironia de adjectivos e verbos, de parênteses e exclamações). Desde os poemas de encontro e desencontro com o Anjo Custódio de Mancha Solar, essa luta iluminada pela crença reconforta-se periodicamente no mistério da Encarnação e recolhe-se em Retábulo para um íntimo Natal: «-Quem é, que tem, esta criança? //Sei o seu nome, o seu desgosto, /Uma só vez em cada ano. /E, cada vez, lhe enxugo o rosto; /E, com mão trémula, o encosto/ Ao meu, já húmido de lágrimas. //Mas, ao sentir, como uma prece, / O meu chorar de arrependido, /Ela sorri, logo adormece.» («Nocturno de Natal»), «Já nada sou. Já nada importa. /Quem renascer chama-se Deus. /(Lá fora, o frio, fino, corta!)/ Natal, adeus!» («Elegia de Natal», Retábulo para Um íntimo Natal.). Por isso, mesmo o ousio de um «Natal esotérico» se crisma com a unção tradicional: No nosso coração que não descansa É um palpitar de esperança Aquela voz, Aquele grito informe de criança! É o Mestre que vem? Já não estamos sós? Que vão fazer as nossas mãos em prece? Semear, amassar, o pão que há-de ir à mesa, Para que tudo recomece A partir de umas palhas de pobreza. Vasto e profundo. No invólucro de Cristo a cruz e a coroa. Entregar novo mundo Ao ponto fundo, Com quem ajoelha e abençoa! 4. Não menos oportuno será exemplificar, com a lembrança de uma grande voz poética prematuramente desaparecida, como a literatura portuguesa continuou nos nossos dias a viver o Natal de Cristo. O dramatismo lírico e a veemência verbal de Rodrigo Emílio ganham sempre altura quando animados pela piedade católica, que se afervora no cadinho das íntimas aflições e das agonias de homem português; e assim se manifesta tanto em «Pequeno altar de poemas, para depor aos pés da Virgem de Fátima», quanto nos poemas de Natal engastados nos livros Mote para motim e Coração mal couraçado e depois retomados na sequência «Consoadas da memória à mesa da solidão», do livro A Segunda Cegueira,. Com Rodrigo Emílio se exemplifica, aliás, como na segunda metade do séc. XX os dados existenciais da memória afectiva (e do cenário tradicional da celebração pública e familiar do Natal) se entrelaçam com a evocação da Sagrada Escritura e com a contemplação do enlace do ministério da Encarnação e do mistério da Paixão e Morte de Cristo na economia da Redenção (como se vê no poema «Música de neve, o silêncio branco»). Por isso também exemplifica que na poesia portuguesa contemporânea o lirismo de Natal continua a passar pela tensão espiritual da «Vigília» edificante: «Meu Deus, aqui estou. E no mais não repares, Por ser esta noite a Noite que é! Em versos Te rezo. E no mais não repares, Por ser esta noite a Noite mais calma! -Conduz-me aos mais altos lugares Da minha fé! -Conduz-me aos mais altos lugares Da minha alma!»

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