Emília Nadal

A memória dos natais da minha infância fixou-se nos ritos das liturgias domésticas que anunciavam a chegada do Menino Jesus Vim ao mundo em Lisboa, nas chamadas Avenidas Novas. Os meus pais, tios e avós eram igualmente citadinos com origens diferentes. A minha família paterna estava em Barcelona, enquanto em Lisboa, no ramo materno, conviviam pacificamente várias nacionalidades e culturas, assim como as opções religiosas de cada um. Tínhamos um leque que ia dos católicos muito praticantes aos republicanos e laicos que nunca iam à igreja, mas eram estruturalmente cristãos. A maior fatia era a dos não praticantes, pelo que não tínhamos a tradição de ir à Missa do Galo, exceptuando a família restrita de uma tia, que era a mais religiosa de todas. Embora todas as irmãs fossem à igreja e rezassem habitualmente, era ela quem tinha mais jeito e paciência para secundar a missão evangelizadora e catequética da nossa avó que raramente saia de casa e era vista como a sacerdotisa da família. Sabíamos que ela passava uma boa parte da noite no seu oratório a rezar por tudo e por todos, e o contacto com ela era próximo e frequente, porque vivíamos no mesmo prédio. Os avós habitavam o 4º andar, seguindo-se os andares das tias e dos tios, sendo o r/c o dos meus pais. Cada família era totalmente independente, pelo que cada casa tinha os seus costumes e tradições. A casa dos avós abria-se a todos, para lá convergiam os oito netos e netas, e era lá que se celebrava a festa de Natal. Em cada casa, porém, havia uma vivência particular da época. Na nossa, o meu pai contava-nos as alegrias e as dificuldades dos natais da sua infância durante as crises na Catalunha. Cantava-nos o al Noy de la Mara, com voz embargada e um brilho no olhar, e falava-nos dos turrones e dos panallets, que haveríamos de provar, enviados pela avó e pelos tios de Barcelona que apenas encontrávamos no Verão. Não me lembro de ter assistido a celebrações do Natal na igreja. Nem em S.Sebastião da Pedreira, onde todos fomos baptizados, nem no Patronato onde a minha mãe nos levava à catequese e à Missa das crianças. Assim, a memória dos natais da minha infância fixou-se nos ritos das liturgias domésticas que anunciavam a chegada do Menino Jesus. Com elas chegava o tempo do sagrado até ao dia em que se celebrava a maior festa que existia na minha família, que era a do Natal. O facto daqueles ritos se repetirem em cada ano, e por serem expressões de amor e de ternura relacionadas com o Menino Jesus, faziam de cada Natal um acontecimento transcendente. Nesses ritos integravam-se os preparativos para o dia 25 de Dezembro, os quais começavam quando o meu avô comunicava o respectivo programa a quem o fosse visitar. Um programa que envolvia toda a gente e que culminava na tarde daquele dia, quando as famílias subiam ao 4º andar para jantar com os avós. Antes de chegarmos a esse momento, era sempre em casa deles que se armava e enfeitava o Presépio e era lá que decorriam os outros ritos que nos fascinavam. Um deles era a rigorosa preparação do peru, o qual estava vivo e era obrigado a engolir nozes e vinho do Porto antes de ser sacrificado. Era uma cerimónia bárbara e arrepiante que decorria ao frio, no terraço superior do prédio. Outro rito indispensável era ver a avó, de quem raramente ouvíamos a voz, a preparar as suas especialidades natalícias portuguesas e brasileiras. Sorrindo, ela tendia pacientemente bolachas finíssimas e broazinhas de cravo e canela, ou preparava a massa dos coscorões. Isto porque, na época do Natal ela dedicava à família os seus afamados dotes culinários, utilizando temperos e receitas que só ela sabia, ou fazia como ninguém. Nesses natais eu tinha a alegria de ver chegar uma parente afastada, muito simples e muito santa, que vivia no campo e vinha passar o Natal a Lisboa. Sendo muito requestada pelas crianças, ela embalava os mais novos a cantar os Santos Anjos e Arcanjos, o Salve Nobre Padroeira, e o Menino nas Palhas Deitado. Com ela aprendemos esses cânticos e tanto a minha irmã como eu, gostávamos de adormecer vendo-a a rezar o terço de olhos fechados e com o rosto transfigurado pela luz da lamparina. Naquela época éramos estimulados a rezar ao Menino Jesus, pedindo-lhe os presentes que desejávamos, os quais eram entendidos como prémios de bom comportamento. No entanto, recordo o desconforto com que, na noite de 24 de Dezembro, colocava os meus sapatos na chaminé da cozinha, estranhando que o Menino Jesus descesse a um sítio tão esquisito. Assim, não tive desilusão quando soube, pelos primos mais velhos, que os presentes eram comprados pelos pais em nome do Menino Jesus, um segredo que criou uma grande cumplicidade entre todos. Quando começava o jantar de Natal, eu gostava de ver a expressão do meu avô, feliz por nos ver todos juntos, sentados à volta da mesa num ambiente de alegria. Após a canja, chegava o famoso peru que a avó recheara de farofa, miúdos e azeitonas, o qual, no fim da refeição ainda chegava para ser distribuído pelas nossas casas. Era a partilha do último sinal da festa, assim como do que restava dos doces e do enorme bolo-rei que era encomendado com presentes para todos. Depois das palavras emocionadas do avô e das saúdes com champanhe, passava-se ao serão, prolongando a boa convivência. Os natais da minha infância aproximavam-se do fim quando a avó se levantava e despedia de todos para se dirigir ao oratório. Pouco depois os pais tentavam arrastar os filhos para a porta, antecedendo o último rito que era entrar no “quarto dos santinhos” para “dar um beijo à avó”. Era um privilégio exclusivo dos netos que ali entravam em bicos de pés, ficando a vê-la rezar à luz das velas que projectavam sombras movediças nas imagens. Sem nunca se impacientar, a avó sorria, respondendo baixinho às nossas perguntas. Quando a minha mãe me ia buscar, eu trazia na face um beijo que exalava a alfazema e a sândalo e, no coração, a convicção reconfortante de que o Menino Jesus tinha vindo e que a avó falava com Deus, Nossa Senhora e os Santos. Emília Nadal, pintora

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