Daniel Serrão

Para mim o Natal era a viagem. Se não ia haver viagem, não iria haver Natal… Passei muitos anos sem que esta recordação de um certo Natal aflorasse à minha autoconsciência. Mas agora tornou-se tão presente como se outra vez estivesse a viver esse Natal de 1943, tinha eu 15 anos. O costume era irmos todos a Vila Real, onde ficava a casa da família. As viagens nessa época eram difíceis e perigosas porque subir o Marão com neve e estradas estreitas e com curvas constantes no dorso da montanha era uma façanha para recordar. Saíamos de manhã, de Viana do Castelo, onde o meu Pai trabalhava como Engenheiro na Junta Autónoma de Estradas e chegávamos a Vila Real ao cair da noite, mesmo a tempo de participar na ceia do Natal. A família era católica tradicional mas a memória que tenho desses natais era de uma festa laica. E foi assim durante os anos da minha infância. No ano de 1943, meu Pai fora transferido pouco tempo antes para a Direcção de Estradas de Coimbra. minha Avó, a patriarca da família, tinha morrido e foi decidido que passaríamos as “festas”, como se dizia, sem sair de Coimbra. Para mim e para os meus dois irmãos foi um desgosto. Apesar das dificuldades a viagem até Vila Real era uma alteração numa vida muito rotineira, como era a nossa naqueles tempos. Não havia televisão nem telemóvel; os dias eram sempre iguais, ir e vir do Liceu, estudar, dormir. Não havia estádios de futebol e as aulas de ginástica eram assim: deitados em bancos de madeira e o professor (?) passeando-se de um lado para o outro e comandando a respiração com um inspirar/expirar monótono; era o que chamavam “ginástica respiratória”. Viajar, em carro de aluguer, até Vila Real, com paragem no caminho para almoçar, era uma aventura que estimulava a imaginação da nossa infância e como que nos fazia viver as peripécias que líamos nos livros. Nesse ano não ia haver viagem e eu antecipava o Natal mais triste de todos os que já tinha vivido. Veio a ser o mais rico e o mais significativo da minha vida pessoal, como vou contar. Por esse tempo eu vivia uma adolescência complicada. Fechado sobre mim próprio, lia como um danado tudo o que conseguia encontrar, desde ficção a obras mais “pesadas” de pensadores europeus traduzidos para a língua portuguesa; e de autores franceses que já ia sabendo ler e compreender. Era um positivista (ingénuo, direi hoje) com uma certeza: Deus não existe, é uma ficção inventada pelos padres para dominarem as pessoas, tolhidas pelo medo do pecado e pelas chamas do inferno. Para mim o Natal era a viagem. Se não ia haver viagem, não iria haver Natal. Minha Mãe, que era uma pessoa simples, criada numa aldeia duriense, Cimbres-Armamar e depois em Vila Real, onde estudou para professora primária, mas que nunca exerceu por ter casado, decidiu que faria a festa do Natal, como era costume na sua aldeia: refeição simples com bacalhau cosido e couves e depois iríamos à missa da meia-noite. Torci o nariz a semelhante programa. Em Vila Real a mesa era farta e variada, a casa grande, um dos meus Tios tocava guitarra e as Tias cantavam, a Avó dava uma libra em ouro a cada neto (libra que logo passava para as mãos do Pai, claro está e nunca mais lhe víamos o rasto) – e ninguém falava em missa. Mas aconteceu como a Mãe decidiu. Meu Pai, que era agnóstico, ficou em casa, mas nós os três fomos, com a Mãe, a uma grande Igreja que julgo terá sido a Sé Nova. Eu ia de cara fechada para semelhante lugar em dia de festa, para mim festa profana. E foi um deslumbramento. Afinal, havia outra religião. Havia uma religião que celebrava a alegria e não o medo, que recordava o nascimento de uma pessoa concreta que passara nesta terra concreta para ensinar os homens a amarem-se uns aos outros e a fazerem o bem. Não a odiarem-se e a matarem-se uns aos outros As luzes, os cânticos, os sorrisos de todos os que não se conheciam mas estavam ali como irmãos, produziram-me uma profunda alteração e perturbação interior e tive de perguntar a mim mesmo: será que eu estou certo, que não há Deus nenhum ou será que há uma outra realidade que não conheço? Regressei com esta dúvida e aqui começou um trabalho difícil de aprendizagem pessoal da natureza da atitude religiosa até à revelação muito íntima e pessoal de que Deus não existe como coisa visível ou palpável mas se revelou por meio de um Homem concreto, que nasceu de Mulher, como todos nós, no seio de um povo que o aguardava. E porque se revelou nesse Homem, Jesus Cristo, esse Homem é a visibilidade possível de Deus. Esta aprendizagem que começa nesse Natal de há 65 anos, ainda não terminou. Prossegue diariamente, porque como disse o nosso grande Gil Vicente “a história de Deus tem tais profundezas…” Por estas profundezas viajo, num ir e vir constante entre a postura do adolescente sorumbático e tristonho, que fui, e a serena e aberta confiança, que diariamente tenho de conquistar, numa presença real e verdadeira de Deus na minha vida pessoal e no meu desempenho social. Foi um Natal poderoso, mas não o suficiente para que eu me instale numa religiosidade aburguesada e formal, burocrática e vazia, onde Deus, finalmente, não está presente. Daniel Serrão Outras memórias • D. Manuel Madureira Dias • J. Pinharanda Gomes • Amaro Neves

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