A Fundação Ajuda à Igreja que Sofre acaba de apresentar o Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo. Um documento, publicado a cada dois anos, que regista as violações ao nível dos direitos humanos, nomeadamente o direito fundamental da liberdade religiosa, numa análise a 196 países. Para falar sobre os principais desafios identificados, é convidada da ECCLESIA e da Renascença Catarina Martins de Bettencourt, diretora do secretariado português da AIS
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
O relatório mostra que a liberdade religiosa foi violada em países onde vivem mais de 4,9 mil milhões de pessoas e há 61 países onde os cidadãos enfrentaram graves violações. É um cenário cada vez mais preocupante?
Sem dúvida. Neste período em análise, entre janeiro de 2021 a dezembro de 2022, verificamos um aumento no número de pessoas, no mundo, que está privado deste direito fundamental, que é a liberdade religiosa. Também por causa do que nós vivemos neste período: não podemos esquecer que, em 2021, estávamos a viver a pandemia e depois, em 2022, tivemos o início da guerra na Ucrânia, com as consequências económicas que todos nós sabemos, também o que está a acontecer no mar do sul da China. Tudo Isto acabou foi negativo para a questão da liberdade religiosa. porque acabamos por estar, os nossos governantes, as principais instituições, mais focados noutros assuntos. Não olharam com a devida preocupação para esta questão da liberdade religiosa e isso teve um impacto nesta análise que nós fazemos, praticamente num terço dos países do mundo, destes 196 que foram analisados, com cerca de 5 mil milhões de pessoas.
Ao analisar esses dados, percebemos que a liberdade religiosa acabou por sofrer bastante com esta ausência de de monitorização, de olhar com olhos de ver para esta questão.
O documento mostra que há 28 países com perseguição religiosa, 12 dos quais no continente africano. Estamos perante outra tragédia esquecida, que afeta milhões de pessoas?
Sem dúvida. Neste relatório, após a análise de todos os países, chegamos à conclusão de que a África, neste período em análise, se tornou o continente mais violento, onde há mais perseguição, mais discriminação. Em 21 dos 54 países africanos temos estas situações extremas de perseguição e discriminação, tornou-se o continente mais perigoso, devido à expansão jihadista a que estamos a assistir. Estamos a falar de países maioritariamente da região do Sahel – Mali, Níger, Nigéria -, abaixo do deserto do Saara, com Moçambique, também. É o continente onde verificamos que há uma maior é perseguição religiosa.
Que fenómenos são os mais preocupantes, em termos de perseguição religiosa?
O que nós observamos neste relatório, quanto aos fenómenos mais perigosos, é a atuação de grupos terroristas, que muitas vezes não atuam com esta questão da religião, não é o principal objetivo. A atuação desses grupos está nas zonas onde as questões económicas são muito importantes, a nível de minério, de petróleo, de cursos da água. Portanto, todas estas regiões estão a ser atacadas e, verificamos que há estes grupos que vão atuando, que utilizam a religião, mas se olharmos há um padrão, é a questão económica que está muitas vezes por trás.
As comunidades, as minorias são muitas vezes as vítimas da atuação destes grupos, que acabam por ser um Estado dentro do próprio Estado, porque atuam impunemente, têm armamento ultrassofisticado e conseguem fazer a extração destes minérios, utilizar estes minérios para o seu próprio proveito, trazendo consequências terríveis para a população, desde a fuga de milhões de pessoas em África à morte de muitas pessoas que são assassinadas nestas nestes ataques violentos, nestas pilhagens que são feitas às aldeias, às vilas destes países.
Relativamente a África, é impossível deixar de falar da situação em Moçambique. O relatório fala da tentativa de estabelecer “um regime islâmico separatista” em Cabo Delgado. É uma situação que a AIS acompanha com preocupação particular?
Sem dúvida, Moçambique é um país historicamente ligado a nós e, portanto, estamos preocupados. Mais uma vez temos a questão económica, porque é uma zona muito rica em termos de gás, não é por acaso que foi escolhida esta zona. Há esta tentativa de criar ali um califado, uma zona onde seja um Estado Islâmico, em que a Sharia, na sua versão mais radical é implementada.
Estamos preocupados, estamos a apoiar e queremos continuar a estar presentes, porque um dos principais objetivos deste relatório é dar visibilidade a estas situações, denunciar, dar a conhecer o que se está a passar nestes países, que muitas vezes ficam esquecido nos nossos alinhamentos…
Encontra nas autoridades vontade para combater estes extremismos? Ou às pessoas estão à sua sorte?
Sim, muitas vezes estão… A atuação do Estado é muito débil, as o forças de segurança não são suficientes. O que nós sentimos, dos testemunhos que vão chegando, de Moçambique, é que há uma certa impunidade. Muitas vezes, os jovens que fazem parte das fileiras destes grupos, dos insurgentes, que é assim que são chamados em Moçambique, não têm também expectativas de futuro. Aqui é-lhes dada uma expectativa de futuro – claro que nós sabemos que não é um futuro brilhante, como é óbvio -, a condição económica de apoio à família, portanto, acabam por ser incluídos nestas fileiras, também com o objetivo de melhorar a sua vida. Temos de olhar para todo o problema, de Moçambique, um país muito pobre, dos mais pobres do mundo: é preciso que o Estado pegue nestes jovens e que lhes consiga dar esta expectativa de futuro, para que eles não vejam que a única saída que têm para a sua vida é ingressar nas fileiras destes grupos jihadistas. Mas o Estado até agora, infelizmente, não tem tido essa capacidade, é necessário que haja esta mobilização, esta vontade de fazer frente, de enfrentar e também de combater estes grupos que estão a atuar nesta zona de Moçambique.
O relatório não fala apenas das comunidades cristãs e faz eco do aumento da perseguição dos muçulmanos, nomeadamente por outros muçulmanos, e de relatos de agressões contra a comunidade judaica. É importante este olhar alargado, para a AIS?
Este relatório é sobre a liberdade religiosa, em todas as comunidades, em todas as religiões, e para nós é importante não nos focarmos – apesar de sermos uma instituição católica – apenas no que se está a passar na comunidade cristã. É importante olhar de forma imparcial para tudo o que se está a passar, porque não seriam um relatório credível que se não olhássemos para tudo o que se está a passar dentro de um país.
Este relatório fala disso, muitas vezes há perseguição entre os próprios muçulmanos, temos outros países em que são hindus, temos aqui as várias vertentes das principais religiões, exatamente para dar um olhar real e o mais fidedigno possível do que se está a passar em cada país. Por isso, não podemos deixar de fora qualquer religião que seja perseguida ou discriminada, por causa da sua fé.
Nesse olhar global, o relatório denuncia e já assinalou uma aparente indiferença da comunidade Internacional perante atrocidades cometidas por regimes autocráticos. O que é que está aqui em causa?
Já não é a primeira vez que nós mencionamos isso. Neste relatório, por causa daquilo que mencionei no início, de todas as questões globais relacionadas com a guerra, a pandemia, assistimos a uma maior passividade dos grandes Estados ocidentais que, muitas vezes, acabam por ignorar e deixar passar as situações. E deixam passar porque estão preocupados com situações internas ou envolventes do seu país; ao mesmo tempo, também dão prioridade às questões económicas que muitas vezes acabam por fazer com que os nossos governantes acabem por fechar os olhos e deixam as questões dos direitos humanos para segundo plano. E temos vários exemplos de facto no mundo neste momento. Neste relatório, falamos de países como, por exemplo a Nigéria e o Paquistão, onde a comunidade Internacional – na Nigéria pelo caso do Petróleo e o Paquistão, que também é uma das superpotências – acaba por ignorar esta ausência de liberdade religiosa. E é isso que está a passar no Paquistão com as comunidades minoritárias, nomeadamente os cristãos e hindus.
Como é que vê a preocupação da Assembleia da República em assinalar uma jornada dedicada à liberdade religiosa e de colocar esse tema na agenda mediática, também no nosso país?
É extremamente importante, porque a única forma de nós enquanto instituição que publicamos um relatório com esta dimensão sobre esta questão, a única forma de nós temos de ter algum impacto com este relatório é fazê-lo chegar às entidades oficiais do nosso Estado. Dar a conhecer a situação no mundo, sobre esta questão da liberdade religiosa, que é um direito fundamental, portanto, ter a Assembleia da República preocupada com esta questão tão importante é para nós também um motivo de orgulho, e ao mesmo tempo de uma maior responsabilidade, porque de facto temos a oportunidade de levar a uma das instâncias máximas do nosso país, esta preocupação
de levarmos esta informação e de deixarmos também este apelo aos nossos deputados que façam a
a sua pressão, que façam o seu trabalho no sentido de pressionar tanto estes governos que são aqui mencionados ao longo do relatório com problemas de discriminação e perseguição da liberdade religiosa. E de levar e de fazer alguma pressão sobre estes governos para que haja de facto uma mudança efetiva no terreno e para que estas comunidades possam senti-las. E por isso é muito importante esta apresentação deste relatório na Assembleia da República.
Este grande fluxo migratório e a fixação de pessoas em Portugal, nos últimos tempos de vários quadrantes e regiões têm tido reflexos na realidade no nosso país, ao nível da integração religiosa e da liberdade?
Nós não temos reportados grandes casos. Não podemos comparar o que se passa connosco com o que se passa no resto do mundo. Comparando com África, Ásia, Médio Oriente, portanto, é incomparável. Mas de facto, a Comissão da Liberdade religiosa tem feito este trabalho e há pouco reporte de casos de perseguição ou de discriminação com base na religião.
Claro que não nos podemos esquecer que somos um país que somos maioritariamente católicos e, portanto, há sempre um ou outro caso, das outras comunidades que acham que não estão a ser totalmente respeitadas, mas de qualquer das formas, eu acho que nós podemos mostrar que há de facto uma integração e temos tido a ajuda das várias comunidades na integração destas novas pessoas que chegam com culturas completamente diferentes da nossa. E, portanto, eu acho que, por exemplo, o papel que o Centro Ismaelita tem feito, da comunidade islâmica que tem feito de acolher estas pessoas que vêm muçulmanos de uma realidade totalmente diferente, mas vêm ter com uma Comunidade que já está há vários anos em Portugal, que já está integrada em Portugal.
E esse apoio é também muito importante para ajudar a fazer de forma correta a integração destas comunidades que chegam.
Mas é preciso manter alguma vigilância?
Sem dúvida. Temos de manter a vigilância, mas é preciso também que estas comunidades continuem a fazer o trabalho, e todos, trabalharmos em conjunto para que Portugal possa continuar a ser de facto, um exemplo relativamente à liberdade religiosa.
E este relatório é apresentado em Lisboa, mas também em muitas cidades do mundo, o que me permite fazer uma pergunta mais global sobre a atividade da fundação, ajuda a Igreja que sofre. Que projetos é que desenvolve e quais são os principais focos da sua ação pelo mundo?
Reportando-nos ao ano de 2022, a nossa principal área de ação concreta, portanto de apoio direto à Igreja que sofre, à Igreja que é necessitada ou à Igreja que é perseguida no mundo, foi no Continente africano e também na Ásia. Foi nesses dois Continentes que estivemos mais focados na ajuda. É claro que também tivemos na Europa a questão da Ucrânia e, portanto, tivemos também um apoio muito direto á Igreja da Ucrânia, com projetos específicos e apoio concreto.
Tivemos seminários, conventos que foram transformados em centros de acolhimento de refugiados. Portanto, de repente passaram de uma comunidade de cerca de 100 jovens para 500 ou mil pessoas que necessitavam diariamente de apoio e, portanto, foi um apoio muito concreto, uma situação muito concreta, mas se olharmos para a nossa área, de facto África, Médio Oriente e Ásia são as nossas principais preocupações. Nós, o ano passado tivemos cerca de 5900 projetos de apoio no Mundo em 128 países, o que é extraordinário, porque foi também um ano extraordinário para nós, porque o apoio dos nossos benfeitores foi extraordinário e permitiu que a nossa ajuda chegasse a mais sítios e a mais comunidades e isto é muito importante. Aproveito para agradecer também aos nossos benfeitores em Portugal porque é com a ajuda de todas estas pessoas que conseguimos fazer tanto trabalho, em tantos países do Mundo.
Houve projetos especiais para a Ucrânia após o início da guerra?
Sim ouve este projeto principal de apoio às comunidades, às congregações que estavam a acolher refugiados. Também ajudamos a adquirir uma furgoneta para poder também transportar para a linha da frente apoio de mantimentos, porque as pessoas não tinham água, comida. E esse apoio foi dado a várias paróquias e dioceses que fizeram esse trabalho extraordinário de conseguir furar as linhas e ir até às populações mais isoladas e continuar a apoiá-las. Foi um trabalho muito concreto, e esperamos agora poder continuar a apoiar. E gostamos muito de poder ajudar na reconstrução, porque há vários pedidos de ajuda para reconstruir muitos edifícios da Igreja que ficaram danificados. Mas só o poderemos fazer se a guerra terminar e se houver essa possibilidade de reconstruir, porque há uma vontade muito grande de voltar a ter os seminários com jovens, voltar a ter os conventos com as irmãs, mas é preciso recuperar muito do que está destruído neste momento.
Em Portugal, como tem sido a ação do secretariado nacional da Fundação AIS? A crise pelo que já podemos perceber não teve grande impacto nos apoios recolhidos?
Não. Não teve e tem sido extraordinário o apoio em Portugal. Recolhemos o maior número de donativos de sempre em Portugal. Ultrapassamos a barreira dos quatro milhões o que é uma coisa extraordinária para o nosso país, porque não nos podemos esquecer que somos um país com dificuldades económicas, onde os nossos salários e pensões são baixos. E é extraordinário ver como há tantas pessoas que retiram do pouco que têm, e retiram um bocadinho para dar a alguém que está a passar pior.
Isso é comum praticamente a todos os telefonemas, cartas que vamos recebendo, e e-mail. São pessoas que dizem que têm pouco e que recebem muito pouco, e quase sempre nos dizem o que é que recebem de reforma, mas também dizem que não podem deixar de ajudar alguém que está a viver uma situação bem mais difícil…
Mas isso é também um sinal de confiança muito grande na Fundação?
Sem dúvida. É um sinal de confiança muito grande porque estão a depositar o pouco que têm nas nossas mãos para nós entregarmos a quem tem menos do que nós. E isso é uma responsabilidade muito grande. E temos conseguido corresponder a estas necessidades da Igreja e temos continuado a ajudar e queremos continuar a ajudar e tem sido o facto extraordinário ver esta solidariedade, esta empatia que os portugueses têm de facto, quando nós falamos dos problemas da Igreja no mundo, as pessoas contactam-nos e ficam de tocadas, ficam sensibilizadas e não querem deixar de ajudar. E por isso foi de facto um ano extraordinário em Portugal, com o apoio de milhares de portugueses que nos têm ajudado consecutivamente e que nos têm de facto ajudado a fazer este trabalho, que depois é espelhado nestes relatórios que vamos produzindo.