«Plenitude de graça, perfeição da fé»

Homilia proferida na Solenidade da Imaculada Conceição, 1. Na Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, celebramos o mistério da salvação, tocamos na verdade profunda do desígnio amoroso de Deus acerca do homem, que criou à Sua Imagem e continua a recriar pela graça da salvação. Maria, a cheia de graça, é a perfeição da criatura desejada por Deus, e que é obra de Deus. Graça é dom e poder criador. À graça da criação, toldada pela desobediência do homem, segue-se a graça da redenção, que restitui à criatura a beleza desejada por Deus, tornando-a capaz de louvor e de intimidade amorosa com a Santíssima Trindade. A redenção é graça, pois significou, por parte de Deus que quer salvar o seu desígnio, uma intervenção radical: a encarnação do próprio Verbo eterno de Deus “por Quem todas as coisas tinham sido criadas” (cf. Col. 1,16). E que esse seu desígnio se mantém inalterado, porque tornado possível em Cristo, é claro para o Apóstolo Paulo: “N’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, em caridade, na sua presença” (Ef. 1,4). Graça é dom e acção de Deus, que supõe luta contra o mal e triunfo de Deus sobre o demónio, que surge com o “anti-desígnio” acerca da criação. Na Cheia de Graça, beneficiamos desta vitória de Deus sobre o demónio, vitória que, em Jesus Cristo, será possível em todas as batalhas travadas pelos homens contra o mal e contra o pecado. 2. O texto do Génesis revela-nos que a desobediência do primeiro par humano, Adão e Eva, constituiu o primeiro desgosto de Deus acerca do homem que criara à Sua imagem: “onde estás? Terias tu comido dessa árvore da qual te proibira de comer?” (Gen. 3,11). Esta tristeza de Deus será completamente recompensada quando, através do Anjo, vai ao encontro de Maria: “Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus”. A mesma plenitude de alegria manifestará Deus acerca de Jesus, a descendência de Maria: “Este é o Meu Filho muito amado; n’Ele me revejo”. A graça existe quando Deus se sente amado e glorificado pela criatura. O drama do pecado atingiu a humanidade desde o início, feriu-a na sua estrutura mais íntima e decisiva, o amor do homem e da mulher. O que pode ser a sua principal força tornou-se fraqueza. O inimigo atacou e feriu a humanidade no que de mais precioso e promissor ela tem: “Foi a mulher que me deste por companheira”. A fraqueza surgiu, não de um ou de outro, mas do íntimo da sua relação, que não perceberam ser força que brotava da sua intimidade com Deus. O seu pecado consistiu em não ouvir o chamamento do Senhor. Maria, a cheia de graça é, desde o início, o anúncio da derrota do demónio: “estabelecerei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela”. Esta inimizade entre a mulher e o demónio será definitivamente confirmada no alto da Cruz, quando a cheia de graça é proclamada a fonte da graça, co-redentora e Mãe da Igreja: “E disse ao discípulo: eis a tua Mãe” (Jo. 19,27). 3. Perante o pecado de Adão e Eva, Deus não condena, chama Adão à salvação. Diz o texto do Génesis: “Depois de Adão ter comido da árvore, o Senhor Deus chamou-o” (Gen. 3,9). Este chamamento a Adão é definitivamente renovado por Jesus Cristo quando, partilhando a sorte de Adão, desceu à morada dos mortos. Lemos num texto do séc. IV: “Deus morreu segundo a carne e acordou a região dos mortos. Vai à procura de Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida. Quer visitar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte. Vai libertar Adão do cativeiro da morte, Ele que é ao mesmo tempo seu Deus e seu filho” (cf. Liturgia das Horas de Sábado Santo). Chamar os que jazem nas trevas da inimizade com Deus, é o que Deus fará continuamente desde aquele primeiro chamamento a Adão; chamou através dos Profetas, através do Seu Filho feito Homem, através da Igreja, para que os homens se abram ao seu desígnio: “sermos santos e irrepreensíveis, em caridade na Sua presença” (Efes. 1,4). A resposta a estes chamamentos é a fé, enquanto escuta e adesão à Palavra do Senhor. A fé é a atitude decisiva da salvação; é adesão ao Senhor e ao Seu chamamento, só porque Ele falou e nos chamou. A fé é a primeira manifestação da caridade e da adoração, porque confiamos em Deus só porque Ele é Deus. Amar a Deus sobre todas as coisas é um acto de fé. A obediência da fé é já em nós o triunfo da graça sobre o pecado. A perfeição da resposta de fé aproxima-nos da perfeição da graça, que é a santidade. Deus chamou Maria e revelou-lhe o Seu desígnio. O que Deus lhe propõe, não há nenhuma razão humana que o possa explicar, nem nenhum dinamismo da natureza que o possa realizar. Ela só pode aceitar esse chamamento, porque se abandona à Palavra de Deus que o anuncia, e acredita que a força de Deus o pode realizar. Em Maria, a plenitude da graça manifesta-se na radicalidade da fé. É isso que Isabel elogia nela: tu és bem-aventurada porque acreditaste que se realizará o que te foi dito pelo Senhor (cf. Lc. 1,45). Acreditar que a Palavra do Senhor se cumprirá. A fé é a participação do homem na obra de Deus. A graça é dom e acção. Quando Jesus faz milagres, diz ao miraculado: foi a tua fé que te salvou. A fé é a indispensável participação do homem na obra da santificação que Deus realiza. São Paulo resumirá este dinamismo da salvação como colaboração indispensável de Deus e do homem, ao afirmar que a salvação vem pela fé, acontece no interior do dinamismo da fé: “O Evangelho é uma força de Deus para a salvação de todo o crente. Porque nele a justiça de Deus revela-se da fé à fé, como está escrito: o justo viverá da fé” (Rom. 1,16-17). A cheia de graça é, para nós, modelo da perfeição da fé. 4. Esta festa da plenitude da graça, em Maria, convida-nos a aprofundar a dimensão sobrenatural da vida cristã. A plenitude de vida e de tudo na vida, que nos torne capazes e dignos de louvar e contemplar a Deus, é obra de Deus em nós, é dom e acção criadora. A cultura ambiente que se respira, comunica-nos um entusiasmo pela natureza, como se o homem fosse capaz da perfeição apenas desenvolvendo as capacidades da sua natureza. Não há perfeição humana sem a acção criadora de Deus em nós, tornada possível pela firmeza da nossa fé. Essa é a razão de ser da nossa caminhada em Igreja. O que esta tem para nos dar são os meios da graça, concretizações eficazes da intervenção criadora de Deus na nossa vida e que nós, com fé, movidos pela Palavra do Senhor, podemos desejar e devemos procurar. Cheia de graça, Maria é mediadora da graça; ajuda-nos e encaminha-nos nessa busca do dom e da força de Deus, para que um dia se possa dizer de nós o que Isabel disse dela: seremos bem-aventurados porque acreditámos que se realizaria em nós o que o Senhor nos prometeu pela Sua Palavra, ao chamar-nos à fé e à salvação. † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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