António Salvado Morgado, Diocese da Guarda
Semana Santa, Semana da Páscoa. Na liturgia destes dias vamos ouvindo ler os vários relatos bíblicos da ressurreição de Jesus Cristo. Vamo-los ouvindo ler e vamos sendo convidados a saboreá-los, contemplando-os, meditando-os e rezando-os na alegria da Glória da Ressurreição. É com estes relatos que encerram os quatro evangelhos: Mateus [28], Marcos [16], Lucas [24] e João [20 e 21].
Como é sabido, a “Ave Maria” é, sem qualquer dúvida, a oração mariana mais recitada em todo o mundo, sendo rezada todos os dias por milhões de católicos. Muitos a rezarão diariamente dezenas de vezes. Bastará lembrar as contas do rosário. Esta oração, que em tempos medievais era conhecida como “Saudação angélica”, possui uma longa história e, na versão actual, é composta por duas partes: uma de louvor, a primeira, e a segunda de petição ou súplica.
Importa-nos aqui a parte relativa ao louvor, com origem Evangelho de Lucas. Da Anunciação é retirada a saudação do Anjo Gabriel a Maria: «Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo!» [1,28]. Do quadro da Visitação é retirada a exclamação de Isabel perante a inesperada visita de Maria, sua prima: «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre!» [1,42].
Lucas, que inicia o Evangelho com estes dois maravilhosos quadros em que Maria ocupa um lugar central, termina-o com as aparições sem qualquer referência à Mãe do Senhor Ressuscitado. O que acontece em Lucas verifica-se também nos outros evangelistas, incluindo João, o discípulo que acompanha Maria junto à cruz. O mesmo acontece nas outras passagens bíblicas em que se referem as aparições: Primeira Carta aos Coríntios [15, 5-7] e Actos dos Apóstolos [1,3-11]. Em nenhum relato, ou menção de aparições, encontramos Maria, Mãe do Ressuscitado.
É sabido que se tem mostrado impossível proceder a um encadeamento sequencial das aparições do Ressuscitado. Elas são variadas, nem sempre concordantes, e próximas, até, de alguma contradição. Mas lembremo-las, num resumo superficial, suficiente para o efeito aqui pensado.
São doze as aparições do Senhor Ressuscitado, não contando com a aparição a Paulo a caminho de Damasco. Realizam-se cinco no Domingo da Páscoa, sendo quatro em Jerusalém e uma entre de Jerusalém e Emaús. Das outras sete, passam-se cinco também em Jerusalém e duas na Galileia, uma na montanha e outra no Lago de Tiberíades.
Exceptuando os quinhentos discípulos mencionados na Primeira Carta aos Coríntios [15, 6], os destinatários comuns das aparições são os Onze, na totalidade, parcialmente ou individualmente, como é o caso de Pedro e Tiago. Mas são mulheres as privilegiadas.
Foram mulheres que descobriram o sepulcro vazio, mas nada se diz sobre a Mãe de Jesus. São mulheres as primeiras beneficiárias das aparições: Maria Madalena, sozinha, no relato de João [Jo 20, 11-18] e Maria Madalena, mulher de Alfeu, mãe de Tiago e José, no relato de Mateus [Mt 28, 8-10]. Ou seja, nas primeiras aparições relatadas nos evangelhos, as destinatárias são mulheres. Mas, nem aí, nesse grupo de mulheres, se encontra Maria, Mãe de Jesus. A «bendita entre as mulheres» parece excluída do grupo. Mesmo o Evangelista João, que nos diz que «Junto à cruz de Jesus, estavam de pé a sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria mulher de Clopas, e Maria Madalena… E, a partir daquela hora, o discípulo recebeu-A entre os seus.» [Jo 19, 25-27], dá qualquer indicação relativa à Mãe de Jesus nas aparições. Quem não estranhará estas ausências? De um lado, uma Mãe que ignora o sepulcro do Filho. E, do outro lado, um Filho que parece ignorar a sua Mãe.
Cada ano Maria, a Mãe de Jesus, está, portanto, ausente nas leituras eucarísticas da semana pascal. E, tendo em atenção a minha experiência pessoal, nas homilias que vamos ouvindo, só raramente a situação é mencionada, pese embora o facto de, a partir do dia de Páscoa, e durante todo o tempo pascal, a oração do “Angelus” ser substituída, na Igreja Católica, pela oração mariana e cristológica “Regina Caeli” (“Rainha do Céu”).
Os relatos das aparições mostram que Cristo Ressuscitado compreendia bem aquilo de que cada destinatário precisava para acreditar. É de crer que Maria, a Mãe, não precisasse de qualquer sinal exterior. Ela encontrava-se desde a Anunciação conhecedora da missão salvífica do seu Filho. A certeza da Ressurreição seria para Maria tão verdade como o Filho que trouxe no ventre.
Leigo que sou, vou-me socorrendo, particularmente em tempo pascal, dos mestres da espiritualidade, para desvendar este e outros mistérios e apurar a acuidade dos sentidos espirituais, tantas vezes adormecidos no inebriamento diário daqueles sentidos que são estudados pela Fisiologia, mas que importa sempre avivar.
Santo Inácio de Loyola inicia a quarta semana dos “Exercícios Espirituais”, dedicada à Ressurreição, com uma contemplação sobre «Como Cristo Nosso Senhor apareceu a Nossa Senhora» [EE, 218]. E explica: «Primeiro, apareceu à Virgem Maria, o que, ainda que não se diga na Escritura, se tem como dito, ao dizer que apareceu a tantos outros; porque a Escritura supõe que temos entendimento, como está escrito: “Também vós sois sem entendimento?”» [EE, 299]. Quer dizer, Santo Inácio apoia-se numa certa evidência do entendimento humano, para o qual será um suposto inquestionável que o Filho Ressuscitado aparece primeiro a sua Mãe e que os evangelistas tenham privilegiado nos relatos outros elementos mais incrédulos da sua proximidade, incluindo os Onze e algumas mulheres. E aponta, então, para os preâmbulos habituais: a história (da expiração na cruz à aparição a Nossa Senhora), a composição do lugar (a disposição do santo sepulcro e a casa de Nossa Senhora), a oração de petição (a graça e o intenso gozo de tanta glória)
Importará atender ao facto de o Santo de Loyola iniciar a semana dos “Exercícios Espirituais”, dedicada à Ressurreição, com a aparição a Nossa Senhora e não com uma meditação ou contemplação sobre a Ressurreição de Jesus como tal. Até parece que, para Santo Inácio, o “momento” transcendente da Ressurreição é também o momento da aparição à Mãe. A Ressurreição de Jesus é subsumida pela aparição à Mãe. Será por isso, talvez, que na composição do lugar, o Santo de Loyola associe o santo sepulcro à casa de Nossa Senhora.
A Senhora das Dores da Paixão não pode fazer esquecer a Senhora da Glória da Ressurreição. As dores dos dramas e tragédias por que vamos passando, pessoalmente e na globalidade da comunidade humana, não podem ofuscar a alegria da Páscoa da Ressurreição.
Nossa Senhora da Anunciação é também Nossa Senhora da Ressurreição. Dois nascimentos compendiam a História da Salvação. «Cheia de graça» e «Bendita entre as mulheres» em Nazaré e na casa de Isabel, Maria, Mãe de Jesus, é também a «Bendita entre as mulheres» na Jerusalém da Páscoa da Ressurreição.
Ave, «Bendita entre as mulheres», Senhora da Ressurreição.
Guarda, 4 de Abril de 2023
António Salvado Morgado