Homilia do bispo de Angra na Missa Crismal

“O espírito de Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu e me enviou a anunciar a boa nova aos infelizes, a curar os corações atribulados…”. É promessa messiânica que se realizará em Jesus Cristo, mas é também para mim, para nós, caríssimos padres. Somos hoje reconhecidos a Deus por nos ter chamado!

Hoje ou quinta-feira recebereis mensagens de parabéns. Aceitai também os meus, com os sentimentos que nutro por vós e nos quais quero crescer. Se ainda não somos, quero que nos tornemos família, para mim tanto ou mais importante que a de sangue. Sois a família que Deus me deu e me confia para cuidar. Parabéns, então, pelo sim a Cristo, pela vida e tudo o que fazeis pelos irmãos como Ele fez. Saúdo os que celebram o seu jubileu: P. João Pires (Pároco da Serreta) nos seus 25 anos e o P. Ângelo (Pároco in solidum da paróquia da Sé, E Cónego da catedral) e P. Abel (até há pouco a residir em Casa da Ribeira e atualmente na nossa Casa de S. Pedro ad vincula que completam este ano os 50 anos de ministério sacerdotal. É já uma bonita caminhada. Lembro os que faleceram este ano, o P. Cipriano. Que o Senhor vos recompense, vos dê a saúde e a graça necessárias.

Com emoção me encontro diante de vós, olhos nos olhos, coração a coração, como bispo. É caso para dizer como Jesus: “desejei ardentemente celebrar esta Páscoa convosco” (Lc 22, 15-16). Ontem pela primeira vez, usei na Liturgia da Renovação das Promessas em Ponta Delgada a expressão “filhos caríssimos”. Tudo farei para a tornar autêntica com a vida e não pela força do ministério.

Por vezes, dou por mim a pensar sobre o ponto em que me encontro. Se “estou no ponto” para usar uma expressão da culinária, se estou nesse ponto que é Cristo, ou se ando a ficar sem sal ou sem o sabor requintado da vida da Palavra em mim. Faz-nos bem pensar quem somos e que pensam de nós os irmãos do presbitério, os paroquianos, o bispo, o mundo… O Cardeal Seán O’Malley no livro “Anel e sandálias” conta uma das suas historietas. Um pai com um filho ao colo, no adro da Igreja, depois da missa, vê sair o padre e pergunta ao filho: “sabes quem é?”. A criança responde de imediato: “É o tipo da comunhão”! Boa definição: O padre é o homem da comunhão.

Independentemente do que queria dizer a criança que o vira a distribuir a Sagrada Comunhão, é uma perceção maravilhosa pensarmo-nos e sermos homens da comunhão e sentirmo-nos bem como membros desta unidade sacramental para a qual contribuímos. A Escritura, sobretudo em S. Paulo, é rica em conselhos: “sede afetuosos uns para com os outros no amor fraterno”.(Rm 12,10), adiantai-vos uns aos outros na mútua estima (Rm 12,19), preocupai-vos a andar de acordo uns com os outros, acolhei-vos uns aos outros, por amor fazei-vos servos uns dos outros, admoestai-vos uns aos outros com toda a sabedoria, consolai-vos pois uns aos outros ou edificai-vos reciprocamente, alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram.

Sabemos que nem sempre é fácil. Também aqui há simpatias, grupos, etc. Isto não é mau, é natural, pois “ai do homem só”! O mal está quando bebemos da mentalidade do mundo e agimos para nos afirmarmos, negando o direito do outro ou dando-nos à maledicência.

Creio poder afirmar que é um campo onde todos precisamos de conversão. As soluções não estão fora, mas dentro de nós. E basta pouco! São Francisco começou a sua conversão real quando realizou gestos concretos, como quando abraçou o leproso. Então passou do ideal à realidade.

Quero lembrar convosco dois gestos poderosos que nos tocaram no dia da ordenação e pelos quais recebemos de Deus o Espírito Santo, dom para uma missão particular.

– O primeiro é o da Imposição das mãos. Fazemo-lo muitas vezes nos sacramentos com palavras e gesto. Jesus impõe as mãos para abençoar, curar ou transmitir o Espírito Santo. Na Ordenação é um gesto sóbrio. O bispo impõe as mãos em silêncio e todos os padres fazem o mesmo.

O que significa? Pode-se dizer que nele o Senhor toma posse de mim. Parece dizer: “Tu pertences-me”. E ainda: “tu estás sob a proteção das minhas mãos. Sob a proteção do meu coração. Tu estás guardado na côncava das minhas mãos, em toda a extensão do meu amor. Permanece no espaço das minhas mãos e dá-me as tuas”! Pertencemos-lhe, sem possessão. Para toda a vida Ele conserva a Sua mão sobre nós, Ele protege-nos. De modo semelhante o bispo, mas também os padres que repetem o gesto. Por sua natureza o gesto cria uma real comunhão entre os padres e com o bispo. Diz a PO nº 8: “por efeito da sua ordenação que os fez entrar na ordem do presbiterado, os padres estão todos intimamente ligados entre si pela fraternidade sacerdotal”.

Os padres são de modo especial sacramentalmente irmãos e, por isso se exige um comportamento fraternal entre todos. A imagem que se faz do sacramento da ordem é, por vezes, demasiado individual. Os presbíteros não são artigos em série, mas recebem na igreja e diante do mundo um Único Sacramento para uma única missão. Esta luz desautoriza uma conceção exclusivista da missão ao serviço de uma determinada comunidade eclesial ao seu cargo. Um presbítero que só se ocupa da sua paróquia ou comunidade e se desentende do resto da diocese reduz substancialmente a sua missão presbiteral e adultera-a. Um presbítero que considera a sua comunidade como algo exclusivamente próprio, “um couto privado” e considera uma intromissão o cuidado e a preocupação que outros têm por ela, desconhece que a missão que lhe é pedida é co-missão. E isto precisamos de o ver concretizado na colaboração pastoral, em comunidades abertas, em saída!

Também a dimensão humana da vida sacerdotal tem necessidade de fraternidade, que não é automática. Se a vida sacerdotal anuncia uma fraternidade formal e artificial, ela será estéril. Se é uma experiência de vida, então a vida é fraternal, dá frutos e merece ser imitada. O Papa Francisco dizia que, para crescer em fraternidade, o padre precisa da coragem da palavra e da coragem da paciência.

“Exorto-te que reanimes o dom de Deus que recebeste pela imposição das minhas mãos… (2Tim 1, 6-7). Dir-nos-ia hoje Paulo como o fez ao amigo Timóteo.

– O outro gesto é a Unção. Também a unção recebida é um dom sobrenatural para cumprir uma missão. No AT, os sacerdotes, os profetas e os reis recebiam a unção e o óleo derramado sobre a cabeça e era o símbolo da santidade querida por Deus. Durante a ordenação sacerdotal, o bispo faz uma unção com o óleo do santo crisma nas palmas das mãos dizendo: “O Senhor Jesus Cristo, a quem o Pai ungiu pelo Espírito Santo e o seu poder te guarde para santificares o povo cristão e ofereceres a Deus o sacrifício eucarístico”.

Porquê as mãos? Bento XVI, numa homilia crismal em 2006, explicava: “A mão do homem é o instrumento da sua ação, é o símbolo da sua capacidade de enfrentar o mundo, que precisamos de “tomar nas mãos”. Então, podemos dizer que o Senhor nos impôs as mãos e que quer no presente as nossas a fim de que elas se tornem as suas. Quer que não sejam instrumento para tomar as coisas, os homens, o mundo para nós, para deles tomarmos posse, mas que, pelo contrário, elas transmitam a ação divina, pondo-se ao serviço do seu amor e distribuindo-o.

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres” ouvíamos no evangelho de Lucas. Jesus diz-se consagrado pela unção e enviado pelo Espírito Santo para agir e cumprir as palavras do profeta Isaías. As mãos de Jesus tocarão a vida dos homens com um toque salvador, libertador, nunca de posse ou domínio.

Nesta celebração, durante a bênção do óleo do crisma, irei rezar por aqueles que irão receber a unção e pedirei que “os que forem com eles ungidos no seu corpo sejam também ungidos na sua alma”. A unção toca o ser, instala-se na vida toda. Entramos nele pelo batismo, somos fortalecidos pela confirmação e marcados para servir na Ordenação.

Caros, padres, esta é uma unção que nos fará felizes. Lembra o salmo 45: “o teu Deus te consagrou com uma unção de alegria”. Os padres da Igreja não tinham dúvida de que este óleo da alegria é o próprio Espírito Santo que foi derramado sobre Jesus Cristo. Esta alegria brota da certeza de que Deus nos conhece e que o Seu amor é um poder acima de todos os poderes.

O Evangelho de João coloca no final do ministério público de Jesus a unção de Betânia. O gesto de Maria é feito em silêncio. Se a unção começa na cabeça, se passa pelas mãos na Ordenação, aqui toca os pés. Maria alivia com um perfume os pés fatigados de Jesus que, de seguida, iniciarão o caminho para Jerusalém… Este gesto precede o lava-pés! Para nós é bom ver a ligação entre os dois. “Precisam-se padres ungidos e que sejam lavadores de pés”.

Sede padres felizes, em cada momento da vida, mesmo fora dos momentos em que visivelmente exerceis o ministério ordenado!

Finalmente, também para a vida pastoral, este dia é importante e “nosso”! Vivemo-lo num contexto difícil para a vida da Igreja em Portugal e para cada padre, bispo ou fiel leigo. Estamos sob suspeita, levamos na nossa cruz o peso das falhas de alguns irmãos nossos e a dor das vítimas. Quando alguém falha, falhamos todos. Quando alguém sofre, sofremos todos. No caminho que fazemos para construir comunidades em estilo sinodal, os abusos podem ser de poder, de autorreferencialismo, de menosprezo pelo sentir e pensar dos fiéis leigos em relação ao que diz respeito a todos, de consciência, de busca desmedida de bens materiais, etc.

Somos convidados mais uma vez à imitação de Cristo e um mesmo olhar pascal. Também Cristo no alto da sua cruz levada até ao fim gritou: “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste”? E quanto terá pensado que não merecia! Este é o nosso momento. Dar tudo de nós mesmos para erradicar da sociedade inteira tudo o que são imagens gastas de pastor que se entende como tendo recebido o poder diretamente de Deus. O poder é de Cristo e Ele crucificado. E nele somos chamados a viver e agir, como humildes servos. A nossa missão, nascida do lado aberto de Cristo, não é olhar e chorar as próprias feridas, mas, aceitando-as e amando-as, sair mais forte para consolar os sem dignidade e libertar todos os que são vítimas de maldade, os injustiçados e desprezados porque frágeis.

Também aqui, precisamos de pensar em quantos colegas se podem afundar nos problemas porque não estamos ao lado, não avisamos, não os ajudamos a corrigir, não somos fraternos e leais.

Precisamos de uma imagem renovada de Igreja que deve acontecer com paciência e confiança na misericórdia de Deus, mas sem prevaricar. Não podemos colocar novos remendos num vestido velho, mas repintá-lo todo: como dizem os místicos, banhá-lo no sangue de Cristo – o Espírito Santo (Catarina de Sena).

Ser padre é uma missão nobre e exige generosidade e espírito de serviço. As provas que vivemos são uma oportunidade para purificar tudo o que não dá beleza ao ministério. Dignificá-lo depende de cada um de nós e passa por nos desprendermos de nós mesmos, das coisas e das pessoas. É isto mesmo que vamos agora fazer renovando as promessas sacerdotais. Recordamos esse dia que mudou a nossa vida, dando graças a Deus e renovaremos as promessas sacerdotais. Porventura acompanharemos este momento com algum desejo sincero de dar o melhor, de ser padre à medida do coração do Mestre. Que Ele vos conceda o Espírito Santo em cada instante da vida. Ao contrário do que se ouve: “na igreja é padre, mas cá fora é um homem como os outros, não é verdade”. Somos sempre sacerdotes, EM CRISTO. Que Ele seja nossa testemunha.

Sé de Angra, 4 de abril de 2023
+ Armando, Bispo de Angra

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