A Assembleia da República vai debater, a 9 de junho, os novos projetos de lei sobre a legalização da eutanásia, na sequência de um agendamento potestativo do PS. José Diogo Ferreira Martins, especialista em cardiologia pediátrica, lamenta a precipitação dos deputados e diz que as propostas deixam por resolver as questões levantadas pelos vetos anteriores
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Como interpreta a urgência de alguns partidos, em regressar ao tema da eutanásia, passados apenas dois meses do início desta nova legislatura?
Vêm-me à cabeça vários adjetivos. Tristeza, perplexidade, surpresa. Porque na realidade, os deputados da atual maioria parlamentar entenderam tornar urgente de uma situação que não é de todo urgente e que não foi pedida pelo povo português. Na primeira oportunidade que tiveram para começar a falar deste assunto, falaram; vai ser discutido na próxima semana, por isso as minhas primeiras palavras são de consternação.
O Parlamento tem várias tomadas de posição contrárias à legalização da eutanásia. A Ordem dos Médicos, já em vários momentos se declarou contrária a esta legalização, vários setores de atividade e de pensamento também mostraram a sua oposição. Faltou uma mobilização mais concertada, mais forte da sociedade civil para fazer ouvir melhor a sua voz?
Penso que a sociedade civil foi bastante interventiva em manifestar-se contra esta possibilidade de projeto de lei. Temos todas as associações profissionais – a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros, a Ordem dos Advogados, a Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida – em uníssono contra este projeto de lei. Para mim, como médico, é muito significativo perceber que os últimos seis bastonários da Ordem dos Médicos – que são pessoas naturalmente diferentes, com crenças, com valores, com atitudes também distintas – concorreram para dizer a mesma coisa: a eutanásia não é um caminho aceitável para o nosso país.
Apesar destes apelos reiterados, aos quais se junta uma petição que reuniu 75 mil assinaturas solicitando a realização de um referendo, os deputados da atual maioria parlamentar entenderam que deveriam avançar com urgência para a aprovação de um projeto lei, que já por duas vezes foi votado e foi vetado.
Na Europa, a eutanásia é legal na Bélgica, na Holanda, no Luxemburgo. Na Suíça existe o suicídio assistido, que também foi aprovado em Espanha. Tomando o exemplo da realidade desses países é possível, na sua opinião e a partir do conhecimento que tem dessas realidades, afirmar-se que a chamada “rampa deslizante” não é um receio, mas sim uma realidade?
Lamentavelmente, é isso mesmo. A rampa deslizante não é apenas um receio… Números são factos, são pessoas e são uma situação que nos preocupa enquanto médicos, enquanto profissionais de saúde. O discurso que promoveu a aceitação e a legalização da eutanásia, nesses países, foi o mesmo que nós vimos em Portugal e que estamos a assistir neste momento: isto será uma coisa rara, para doenças terminais, em situações extremas para as quais a ciência e a medicina já não conseguem oferecer um contributo. Isto, em si mesmo, já teria muito para comentar e para dizer, mas a verdade é que a rampa deslizante se instala de forma brutal. É mesmo esta a palavra que eu quero utilizar para a descrever: brutal.
Onde inicialmente tínhamos eutanásia limitada a doentes oncológicos terminais, temos hoje em dia eutanásias que se aplicam a pessoas que estão “cansadas de viver”, gente que tem problemas psiquiátricos e que tem desejos de morte – que fazem parte da sua doença – as quais não fazem parte, naturalmente, daquilo que seria o espírito da lei, tal como ele foi vendido numa forma inicial. Mais grave ainda, temos também crianças, que obviamente não têm consciência e que de uma forma compassiva – com muitas aspas, porque é de facto uma utilização abusiva do termo -, são eutanasiadas a pedido dos seus pais ou dos médicos que deles tomam conta. Vemos quem ano após ano, na Bélgica e na Holanda – em particular na Holanda, cujos números estão disponíveis para quem os queira ver – têm vindo a aumentar de forma significativa.
Falou do espírito da lei, mas a discussão em Portugal ainda está muito na letra da lei – porque se fala em doença fatal, incurável, grave… O que é que esta indefinição nos mostra?
O nosso presidente da República é uma pessoa que, para além de ter uma sensibilidade humana muito grande, tem também um conhecimento jurídico e uma inteligência jurídica muitíssimo notável. Ele percebeu muito bem que, da forma como a lei estava escrita, previa à partida uma possibilidade de extravasar aquilo que nos era dito. Foi precisamente por essa indefinição de conceitos que o senhor presidente da República entendeu remeter (para o Tribunal Constitucional), como uma grande chapada de luva branca aos autores do projeto de lei. Se bem entendi, o que o senhor presidente da República disse foi: esta lei está mal feita do ponto de vista jurídico. Clarifiquem, por favor, os termos.
Daquilo que pude observar e do que pude ler sobre esta lei, é algo que o novo projeto de lei não resolve, antes pelo contrário, agrava a possibilidade de haver abusos relativamente ao que se diz ser o espírito da lei.
A terminologia usada é imediatamente identificável nas patologias, ou, pelo contrário, deixa a decisão ao arbítrio das pessoas?
Põe a tónica exatamente no ponto certo: como médico, sei que é francamente difícil de definir o que é uma doença com um grau evolutivo muito avançado ou, mais importante ainda, com o sofrimento intolerável. A tolerância do sofrimento é uma experiência profundamente pessoal e depende não só daquilo que é o próprio sofredor – passe a expressão – mas também dos cuidados que esta pessoa tem, quanto à equipa médica que o acompanha.
Estou a referir-me a cuidados paliativos: naturalmente haverá esta preocupação com o sofrimento intolerável, mas na verdade é apenas uma incapacidade dos médicos que o acompanham ou a ausência desses médicos para tornar o sofrimento tolerável, à luz da melhor prática médica.
Falou dos cuidados paliativos. Essa é a discussão que ainda falta fazer?
Sim. Todos os especialistas em cuidados paliativos – a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, o Observatório Nacional dos Cuidados Paliativos – têm dito que mais de 70% da população portuguesa não tem acesso a cuidados paliativos. Eu repito: 70% das pessoas em Portugal morrem sem ter acesso a uma possibilidade de tornar o seu sofrimento tolerável. Reparem bem o absurdo desta questão: estamos a propor uma possibilidade de escolha nesta lei que esperemos não venha a ser aprovada, mas é uma possibilidade entre duas opções, sendo que uma das opções é inexistente para 70% das pessoas. Não é uma verdadeira escolha. Estamos a empurrar os mais frágeis, os mais fracos, os mais idosos da nossa população para a opção da eutanásia, porque nós não estamos a oferecer-lhes os cuidados que paliem a sua dor.
Infelizmente, sabemos que se morre mal em Portugal. O Papa referiu, a respeito desta temática, que ajudar a viver o final da vida de forma mais humana não se deve confundir com desvios inaceitáveis que levam a matar. O debate sobre a eutanásia, também deste ponto de vista, sofreu desta confusão?
Sim. Há aqui temas complexos que, por vezes, são mal compreendidos ou então explicados de forma propositadamente vaga.
Faço uma distinção entre aquilo que é antecipar a morte – a isso chamemos eutanásia, quando é a pedido do próprio – e adiar de forma desnecessária e fútil a morte – a isso, chamamos distanásia. Creio que muitos dos que nos ouvem poderão ter tido experiências com familiares ou conhecidos, gente de quem gostavam, em que viram prolongar de forma desnecessária a sua vida, às vezes situações verdadeiramente dramáticas. Perante estas situações, vão pensando: “eu não quero isto para mim. Quando chegar a altura de morrer, deixem-me morrer”. Ora, não deixar alguém morrer ou prolongar de forma desnecessária a vida de alguém é absolutamente errado, condenável. Mas não é esse facto que nos deve levar a defender a eutanásia. Nem antecipar nem adiar.
Volto agora a uma questão que tem a ver mais com o processo legislativo, propriamente dito. Além dos projetos que estão em discussão, sabemos que há forças políticas e movimentos da sociedade civil que têm ponderado propor um referendo sobre esta matéria. Esta possibilidade poderia ser um mal menor, por assim dizer?
Nesta fase, passados os anos que se passaram a discutir este tema, a convicção de quem anda todos os dias no terreno é que as coisas ainda não são claras, na cabeça das pessoas. Ainda existe muita confusão entre o prolongamento desnecessário da vida e a antecipação mais breve da morte.
Cremos que a possibilidade de um referendo – com todos os riscos, os custos e as dificuldades que eles têm – seria benéfica para que Portugal e os portugueses tenham a oportunidade de perceber melhor verdadeiramente aquilo que está em causa.
O presidente da República já vetou duas vezes a lei. Espera, eventualmente, um terceiro veto antes do referendo?
Eu não sou político, sou médico e não consigo fazer considerações sobre expectativas políticas. Mas, se me pergunta, numa lógica de esperança, naturalmente que espero. Aliás, espero mais do que isso.
Dizia há pouco que o texto deixava, em aberto, interpretações que eram ainda mais latas do que o texto anterior e isso pode levar a um veto sem o envio para o Tribunal Constitucional…
Naturalmente. Eu ainda tenho outra esperança maior, que pode ser irrefletida, mas é a esperança de que os deputados caiam em si e não aprovem esta lei.
Depois da tomada de posse, disse que as questões éticas relacionadas com a Covid-19 e múltiplos novos desafios que atentam contra a dignidade humana estavam entre as suas principais preocupações. Há alguns que queira sublinhar?
Eu acho que a pandemia foi uma enorme chamada de atenção à fraternidade mundial. Todos nos sentimos corresponsáveis pelo sofrimento dos outros.
Penso que, um dia, quando olharmos para trás, veremos que não fizemos tudo bem feito. Há um assunto que incomoda tanto: a centralização das vacinas nos países desenvolvidos e a falta de uma distribuição mais equitativa aos países menos desenvolvidos. Este é apenas um aspeto, mas aquilo que sai reforçado da pandemia é esta noção muito forte de que somos todos irmãos e responsáveis uns pelos outros. Responsáveis, principalmente, pelos que mais sofrem. Quantos de nós, quantos dos que nos ouvem hoje não fizeram enormes sacrifícios ao longo desta pandemia? E fizemo-lo sem nos queixarmos, percebendo que os sacrifícios que fazíamos hoje revertiam, diretamente, para aqueles que precisavam desses equipamentos médicos, desses recursos financeiros. Todos nós o fizemos, percebendo que aqueles que estão mais doentes precisam de nós. Ora, o tema da eutanásia é precisamente isso: aqueles que estão mais doentes precisam de nós.
Não me parece de todo razoável ter a expectativa de que a aprovação de uma lei venha também facilitar a implementação de cuidados paliativos. Parece-me, aliás, que seria muito ingénuo antecipar que promover uma lei de eutanásia possa ocorrer, em simultâneo, com uma verdadeira e honesta implementação de cuidados paliativos. Ora, se nós temos poucos recursos e aquilo que fizemos, do ponto de vista legislativo, foi dar esta solução para as pessoas com um sofrimento intolerável, que tipo de drive é que vamos ter para agora reforçar mais os cuidados paliativos?
Ainda em relação à pandemia: nesta fase estamos a ter a melhor estratégia, no combate?
Eu sou cardiologista pediátrico, tive vários convites para falar do tema e sempre achei que deveria deixar os especialistas terem voz, porque a cacofonia de vozes pode ser confusa para todos. Portanto, não irei comentar a adequabilidade ou não da estratégia, apenas sublinhar a preocupação com todos os outros doentes que continuam doentes.
Foram divulgados dados estatísticos, insofismáveis, que mostram que no ano passado houve um acréscimo de 16% de mortalidade relativamente à média dos seis anos anteriores; a Covid era apenas responsável por uma parte destas mortes. Esta é a sensação que quem é médico e trata de doentes todos os dias tem: há muita gente que faltou a consultas, muita gente que não foi operada e devia ter sido operada, muito rastreio do cancro que não foi feito e tudo isso serão os números que nós agora temos de ajudar a mitigar.
Sem prejuízo de me abster de comentar, relativamente ao controlo técnico e político da pandemia, diria que nós não somos apenas médicos de doentes com Covid, somos médicos de todas as doenças e temos um enorme desafio – todo o serviço de saúde, não só nacional, mas também os convencionados – de tomar conta de todos estes doentes que, de alguma forma, tiveram menos atenção nossa ao longo destes últimos dois anos.
Os mais velhos terão sido os que mais sofreram com a Covid-19, com toda a situação sanitária e social. É preciso uma alteração de comportamento e de mentalidade face aos nossos idosos?
Eu acho que os idosos são um dos grandes desafios da sociedade moderna. Cada vez s vivemos mais tempo e, não só numa perspetiva de saúde, mas também numa perspetiva de bem-estar social e familiar, é imperativo termos um olhar amoroso e fraterno para os nossos idosos, que não são palavras abstratas, são os nossos pais, são os nossos avós, são os nossos tios, é gente que precisa de sentir-se amada e também incluída na sociedade.
Acho que é um enorme desafio, ao qual a Associação dos Médicos Católicos gostaria também de emprestar sua voz, no sentido de poder chamar a atenção para o enorme desafio de cuidar dos nossos idosos.
Participou na semana passada num simpósio em Itália organizado pela Federação Europeia das Associações de Médicos Católicos. Estas preocupações que aqui deixou também são partilhadas pelas diferentes associadas europeias?
Sem dúvida. Este congresso, onde estive recentemente, em conjunto com outros médicos portugueses, reuniu participantes de mais de 20 países. Estivemos a debater um tema absolutamente central para a medicina moderna, que é o da medicina compassiva.
A compaixão é uma palavra que caiu em desuso, é considerada como “ter pena de”, um sentimento, não é uma ação. Foi-nos proposta uma palavra alternativa, que tem o seu valor, chamado “empatia”, mas é uma palavra muito recente que diz qualquer coisa como “eu percebo, eu consigo imaginar qual é o teu sofrimento”. E isto é bom, mas é menos do que aquilo que devemos fazer, porque mais do que imaginar o sofrimento, nós devemos partilhar, ou melhor, compartilhar o sofrimento dos nossos doentes. Não, obviamente, tendo a dor que eles têm, mas tendo a nossa dor para que a dor deles seja menor. E esta atitude não é apenas um sentimento, tem um nome, chama-se compaixão.
Tomou posse em 2020. Já é possível um balanço do seu mandato? Tem no horizonte a possibilidade de se manter na presidência?
Eu nunca falo em nome pessoal, mas sempre em nome da direção.
Nós, enquanto direção, sentimos que vamos fazendo aquilo que conseguimos, aos ombros de gigantes, dos nossos maiores que nos precederam. Acredito que ninguém desta atual direção, que em breve cessará o mandato, deixará de estar disponível, de uma forma ou de outra, para continuar a dar o seu contributo. Enquanto médicos católicos, somos absolutamente animados por este amor ao próximo, que não nos permite ficar quietos.