Servir, a palavra de ordem do Bispo do Porto

Transformar o «desejo espontâneo de auto-afirmação em desejo de comunhão e vontade incansável de servir». Homilia de Domingo de Ramos do Bispo do Porto Bela e importante é esta designação litúrgica, meus irmãos e irmãs: “Domingo de Ramos na Paixão do Senhor”. Bela pelo que evoca e importante pelo que não deixa esquecer. Havia, efectivamente, ramos e palmas a receber Jesus, na sua entrada em Jerusalém, tão profética como messiânica. Mas esse era o primeiro quadro vivo de um drama maior, que continuaria: a paixão do Senhor, onde podemos descortinar o duplo sentido do que passou por nós e do modo apaixonado como o fez. E porque se trata duma celebração, não apenas trazemos à lembrança, por palavras e gestos rituais, o que aconteceu um dia, mas revivemo-lo verdadeiramente, porque acontece hoje e acontecerá sempre, enquanto houver mundo a salvar, almas a levantar, vidas a restaurar. Ele está connosco, seu corpo eclesial, para continuar no mundo idêntica paixão, com igual significado e aplicação. Irmãos e irmãs que me escutais, nas mais diversas e por vezes difíceis condições da vida presente de cada um, exactamente aonde a paixão de Cristo quer incidir agora, em verdade e caridade perenes: deixai-vos acompanhar por Aquele que tomou para si a nossa humanidade, para a renovar e preencher com a sua divindade. Os passos de Jesus, enquanto despojamento seu e caminho nosso, continuam agora nas vossas próprias existências, que poderão ter ramos e palmas, mas certamente encontram provações e espinhos. É um caminho que se abre – pois Ele é o caminho! – e um caminho de glória, de que fazemos Eucaristia e louvor a Deus. Resumiu-o a oração colecta, em que pedíamos a Deus que, para dar aos homens um exemplo de humildade, quis que o nosso Salvador se fizesse homem e padecesse o suplício da cruz, nos leve a seguir os ensinamentos da sua paixão, para merecermos tomar parte na glória da ressurreição. E nisto mesmo se encerra toda a celebração da Semana Maior em que entrámos, para dela sairmos mais ressuscitados, para Deus e para o mundo. Sigamos pois os ensinamentos da paixão de Jesus, cuja narração devotamente escutámos. Sigamo-los agora na lembrança geral e nalgum ponto que mais directamente se aplique à existência de cada um, onde precise de ser salva pela caridade divina; sigamos alguns detalhes do texto de São Lucas. O evangelista coloca, depois da instituição da Eucaristia, um elucidativo diálogo, para eles como para nós. Ainda naquele momento, de facto, os discípulos questionavam-se uns aos outros. – E sobre quê? Sobre qual deles se devia considerar o maior… Jesus, cuja paciência é do tamanho da sua caridade infinda, lembrou-lhes que essa era uma falsa questão e absolutamente deslocada, própria de dominadores mundanos. E prosseguiu dizendo – com o seu exemplo, antes de mais – que a única grandeza, real e consistente, é a do serviço. Lembremos as palavras, pois temos de recordá-las sem cessar: “O maior entre vós seja como o menor, e aquele que manda seja como quem serve. […] Ora eu estou no meio de vós como aquele que serve”. Já o devíamos ter aprendido todos, tal a evidência das coisas. Aprendamo-lo com o próprio Deus, cuja humildade nos espanta, mas nos há-de converter, pois imaginamo-Lo mais facilmente a partir dos nossos fumos de grandeza do que a partir da sua auto-manifestação em Cristo, humilde e servo de todos. Se lhe confessamos o Evangelho como “palavra da salvação”, vivamo-lo também, para servirmos os irmãos com iguais sentimentos. Os santos mais lembrados, cujo exemplo e ensino realmente determinam vidas e sustentam a esperança, mesmo para além das fronteiras visíveis da Igreja, são aqueles e aquelas que mais serviram os seus semelhantes, no corpo ou no espírito. Tem-se dito, por exemplo, que uma mulher como Teresa de Calcutá contribuiu tanto ou mais para a apresentação de Cristo no grande sub-continente indiano, do que muitas outras iniciativas apostólicas, de valor inquestionável, aliás. No nosso País e no século passado, apontem-se exemplos como o Padre Cruz, o Padre Américo ou Sílvia Cardoso, no mesmo sentido. E à escala imediata, de famílias, amigos e comunidades, mesmo cívicas, empresariais e políticas, nacionais ou internacionais, verificamos igualmente a verdade concreta do ensinamento de Cristo: são determinantes apenas os que servem; atrai-nos e convence-nos sobretudo o seu serviço. Assim Cristo, primeiro e acima de tudo. Primeiro, porque “amou até ao fim”; acima, porque “assumindo a condição de servo – Ele, que era de condição divina -, tornou-se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todos os nomes”. – Que esta celebração nos convença e esta Semana nos converta aos sentimentos de Cristo, transformando o desejo espontâneo de auto-afirmação em desejo de comunhão e vontade incansável de servir, onde com Ele e com todos nos realizemos por fim, na caridade, na justiça e na paz! Mais uma passagem, ainda, pela oportunidade acrescida: a agonia no horto, com as circunstâncias da versão que escutámos. Diz-nos o evangelista que Jesus exortou os discípulos a orar, para não caírem em tentação; que Ele mesmo orou em seguida, para conseguir comungar o cálice da nossa salvação, que para Ele tinha o custo imenso de nos vir buscar onde estávamos, onde porventura ainda estejamos – quer dizer, à nossa própria desolação e morte -, para juntos regressarmos ao Pai, princípio, recomeço e realização última das nossas vidas; que nesta conformação absoluta com o desígnio salvador do Pai, encontrou o consolo dum Anjo; que, entretanto, deparou com os discípulos, não orando mas dormindo, “por causa da tristeza”; e que a estes mesmo increpou: “Porque estais a dormir? Levantai-vos e orai, para não entrardes em tentação”. Ainda aqui, a Paixão de Jesus elucida-nos sobre Ele e sobre nós. Porque só no acolhimento da vontade de Deus nos salvamos e ajudamos à salvação dos outros; porque a tribulação que tal nos traga inclui a consolação divina; porque a tristeza ou a decepção que nos advenham nos podem entorpecer e alienar; e porque a vitória definitiva sobre a grande tentação de desistirmos de Deus, dos outros e até do melhor de nós mesmos vence-se com Cristo, despertos, orantes e disponíveis. Assim queremos estar nós, irmãos e irmãs, em Domingo de Ramos que não sequem. Assim queremos estar, com Jesus e o Pai no mesmo Espírito, para que o triunfo da vida sobre a morte continue a acontecer em nós e à nossa volta. Assim persistiremos decerto, sem nos faltar a companhia de todos os “anjos” que Deus nos envia, com palavras de ânimo e mensagens de esperança, consolações divinas e estímulo de tantos companheiros de jornada. Assim queremos estar, e em especial nas alturas em que problemas de vária ordem se acumulem sobre nós e sobre os outros, podendo levar-nos ao sono do alheamento ou ao torpor das vidas adiadas. Assim queremos estar, para cumprirmos nesta Semana Santa e na santificação de toda a vida, pessoal e familiar, eclesial e cívica o mandato de Jesus: “Levantai-vos e orai, para não entrardes em tentação!”. Assim passaremos definitivamente para o seu Reino, já assinalado nesta vida pelo amor a Deus e ao próximo, caminho de Evangelho e de esperança para o Mundo! E o mesmo pediremos, na oração conclusiva desta celebração, suplicando a Deus que nos passe da morte à vida, pela paixão de Cristo, nossa liberdade e paz! D. Manuel Clemente

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