Tony Neves, em Lisboa
Mia Couto é um dos maiores escritores lusófonos da atualidade. Nascido na Beira (Moçambique) e a viver e trabalhar no seu torrão natal, este biólogo não nos cansa de surpreender pela sua criatividade e mestria linguística, criando mesmo palavras novas. Dou um exemplo: num dos seus livros, o autor apresenta o conto do ‘fintabolista’, um futebolista que fintava muito bem! Esta história integra uma colectânea que se chama ‘Contos do nascer da terra’. Ora, na nossa linguagem corrente, falamos do ‘nascer do sol’…
Mas voltemos à trilogia ‘As Areias do Imperador’, atacando o terceiro livro, com o sugestivo título: ‘O Bebedor de Horizontes’(2017). Faço mais recortes: ‘Os soldados são como os caçadores: as suas histórias têm pouco a ver com a realidade’ (p.39); ‘Só há um critério para medir a grandeza de um comandante: o modo como trata os vencidos’ (p.45); ‘A mais grave herança da guerra não são as feridas nem os escombros. A pior herança são os vencedores. Acreditam os vencedores que avitória os fez donos da terra e acham-se no direito de ser os seus vitalícios governantes’ (p.65); ‘Vou para longe de mim, sem bagagem nem documentos. Mas levo comigo o meu filho, o princípio da minha eternidade’ (p.106); ‘Envenenamos tantos poços que acabamos matando a nossa própria gente’ (p.136); ‘A coragem não mora no cérebro. Emerge das entranhas’ (p.144); ‘Na nossa terra não se morre de um ’quê’. Morre-se de um ‘quem’. A morte não tem causa. Apenas culpado’ (p.157); ‘O amor move montanhas. Mas o desamor cria abismos’ (p.168); ‘As cartas de amor nunca dizem nada’ (p.171); ‘Nada se vende tão caro como o silêncio’ (p.172); ‘O amor é a mais passageira de todas as doenças mortais’ (p.172); ‘Sucede sempre assim: os humilhados acabam por ficar iguais aos opressores’ (p.174); ‘Na arte de matar não evoluímos muito desde os tempos primitivos. A bala o que é senão uma pequena pedra que aprendeu a voar?’ (p.220); ‘As fotos são como nós, os sargentos: dizem o que lhes mandam dizer’ (p.253); ‘Algo de inesperado nos une na guerra, africanos e europeus: do outro lado do mar, na terra distante em que nascemos, todos nos julgam mortos’ (p.257); ‘Todas as mães que perderam os filhos são sepultadas por dentro’ (p.258); ‘Os filhos dos chefes são quase sempre insuportáveis: o que lhes falta em maturidade sobra-lhes em arrogância’ (p.263); ‘O grande rei não é o que conduz o seu povo na guerra mas o que afasta a guerra para longe do seu povo’ (p.311); ‘Os ausentes servem para isso mesmo: para serem convertidos em histórias’ (p.323); ‘Ali (S. Tomé) nos ocupamos com o que já antes fazíamos: absolutamente nada’ (p.332); ‘Sou negra, é verdade. Mas entro e saio da minha raça quando quero’ (p.356);‘Na minha idade tudo é pesado, a começar pelos meus próprios braços’ (p.366).
‘O universo num grão de areia’ é um regresso a um estilo já antes usado por Mia Couto. Faz muitas conferências por esse mundo além, escreve artigos para jornais e revistas. Ao fim de algum tempo, há muitas ideias dispersas que faz sentido juntar. Assim nasceu mais um livro, publicado em 2019. É uma colectânea de 27 intervenções deste escritor moçambicano, todas elas publicadas ou proferidas recentemente. Como explica a introdução, o livro aborda ‘temas que vão da política à literatura, da cultura à antropologia e à biologia’. Fiz alguns recortes. Cito hoje só o artigo que publicou no jornal ‘The Times’ (Londres) com o título ‘Uma segunda alma’. Mia Couto conta a tragédia do ciclone de 1962 em paralelo com o que vitimou a sua cidade da Beira em 2018. Na visita que ali fez, andou à procura ‘de um herói, de alguém que assegure que há gentes neste mundo cujo único poder é serem generosas’ (p.15). Beira ficou destruída, mas quando as televisões se esquecerem, tudo regressará ao mesmo de sempre. Até a tristeza, hoje, se tornou descartável’ (p.16).
Muito mais conta o escritor-biólogo nesta colectânea, mas os restantes 24 textos merecem mais espaço. Se é verdade que o universo é feito de biliões de grãos de areia, ele está todo em cada um destes minúsculos grãos. Voltaremos a Mia Couto.