SABER APRENDER – A deixar-se tocar

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Jamais esquecerei aquele email. Com palavras sinceras e surpreendentes, um grande amigo dir-me-ia que se tornava ateu porque a ciência explica tudo. Parece uma situação típica de uma crise de fé se não soubesse o quanto ele estava empenhado em diversas actividades da Igreja. A Nova Evangelização a que S. João Paulo II apelava na Redemptoris Missio em Dezembro de 1990, talvez se tenha tornado uma necessidade no interior da Igreja e não somente para os que estão fora.

Ainda hoje penso e reflicto sobre este acontecimento. No início, pensava ser uma questão racional, uma vez que muitas das nossas interessantes conversas até de madrugada versavam sobre temas de filosofia e de teologia dos quais percebíamos muito pouco. Por isso, respondi à sua mensagem rebatendo com uma série de ideias inspiradas na enorme quantidade de livros que estava a ler sobre ciência e fé. Mas de nada serviu.

Quando a fé em Deus cuja vivência preencheu uma parte significativa da nossa vida é abalada, surgem inúmeras questões. Este meu amigo colocou-me 12 e procurei responder o melhor que podia, mas serviu de pouco. Como pode a ciência que nutre a minha vida profissional como professor universitário e investigador ser causa de uma conversão ateísta? Se a ciência explica tudo, ficaria sem trabalho, e pela minha experiência profissional, qualquer boa ciência abre mais horizontes do que fecha, suscita mais perguntas do que respostas. Logo, como poderia produzir um abalo tão grande na fé de alguém? Por que razão não produziu o mesmo abalo em mim?

Quando penso no percurso de fé que fazemos, sobretudo o relacionado com a tradição Católica que conheço melhor, sabemos como não é a razão que sustenta a nossa fé, mas uma experiência profunda do amor de Deus. No meu caso, aconteceu em Paray-Le-Monial, durante um encontro internacional de jovens organizado pela Comunidade Emanuel.

Saber tocar guitarra tem a vantagem de podermos participar na orquestra de instrumentos destes encontros internacionais de jovens e essa é, já de si, uma experiência inesquecível. Mas implica, também, estarmos no palco a um canto, o que nos dá uma visão ímpar da assembleia de jovens. Num dos dias do encontro, um jovem de cadeira de rodas estava na fila da frente. Olhou para mim, ou foi isso que senti. E no seu olhar vi reflectido o quanto Deus me amava. Sou uma pessoa emocional, mas muito racional, e não encontrei outra razão para aquilo que estava a sentir através daquele olhar que não fosse uma experiência palpável de Deus através do Espírito Santo que se fazia presente entre nós naquele encontro. Marcou-me para o resto da vida. Nunca mais duvidei do amor de Deus, apesar de muitos dissabores que vivi depois daquele momento. Terá o meu amigo feito uma experiência de Deus?

Quando abordei esse assunto numa das nossas conversas, percebi que não havia nada que se assemelhasse a uma experiência de Deus como a que eu tinha feito. E quando tentei perceber se teria havido uma experiência de Deus de outro género, fiquei na mesma. Inesperadamente, este meu amigo acabava de demonstrar ser possível alguém ser católico durante 30 anos sem se ter uma experiência de Deus. Por isso, quando pensamos na Nova Evangelização, devíamos considerar, também, a experiência que os católicos fazem de Deus dentro da Igreja. Não chega participar ou animar missas. Não chegar participar ou coordenar grupos de jovens. Não chega receber formação ou ser catequista. Tudo isso é importante, mas insuficiente. Sem deixarmo-nos tocar por Jesus, e fazermos uma experiência sensível da Sua presença, não estamos em condições de O anunciar no âmbito de uma Nova Evangelização. Mas sabemos que não existem receitas quando o Espírito de Deus sopra quando quer e ao Seu modo.

Reflectindo sobre a minha experiência do amor de Deus, creio ter-me deixado tocar naquele momento pelo olhar d’Ele naquele jovem. Um toque que não acontecia por raciocínio, emoção ou solitariamente, mas na relação com o outro através de um simples olhar. Os relacionamentos entre nós, e a vivência que fazemos nas mais pequenas coisas são as oportunidades que abrem o nosso coração a nos deixarmos tocar por Deus. Não basta acreditar em Deus ao modo católico para fazer uma experiência sensível com Ele. Se amar cada pessoa, concretamente, deixo-me tocar no coração, quer queira ou não, porque ser amado faz-nos um bem tremendo e transforma-nos por dentro. Mas ainda que me sinta tocado pelo amor de Deus, nem sempre é fácil transmitir esta experiência aos outros, mesmo dentro da Igreja Católica.

Não sei por que razão, mas tendo feito a experiência de participar em diversos movimentos da Igreja, senti muitas vezes o risco de acharmos que a experiência que fazemos num determinado movimento é a mais profunda que se pode fazer. Por isso, uma Nova Evangelização do ponto de vista interior à vivência católica pode significar ir para além da uma vivência em particular, associada a este grupo ou àquele, a um determinado movimento, paróquia ou diocese. Na experiência da conversão do meu amigo ao ateísmo aprendi que o diálogo pode ser essencial para saber aprender a deixarmo-nos tocar por Ele.

Nas palavras de um médico italiano ateu, Piero Taiti, para dialogar verdadeiramente é preciso «libertar-se dos preconceitos e estar disponível para escutar as razões dos outros de modo a poder entrar numa conversação que terá como resultado também o mudar de ideias. Deve-se entrar com a maior liberdade de espírito, para poder também sair mudado: isto é indispensável para dialogar.» Pensando nestas palavras creio que uma maior liberdade de espírito, aumenta a possibilidade de ser tocado por Deus.

Para qualquer católico, com uma longa experiência de Igreja, pode ser difícil aceitar que os valores espirituais particulares ao Catolicismo possam fazer pouco ou nada para evitar que uma pessoa mude de convicções graças à pobre filosofia ateísta que, um dia, acaba por ler e ser mais convincente. Mas o anúncio autêntico acontece sempre na fragilidade. E se não aceitarmos a nossa fragilidade, corremos o risco de sobrepor a nossa acção à acção do Espírito Santo, retirando-lhe espaço sem ter essa intenção.

Desde o início do seu pontificado que João Paulo II falava numa “nova primavera” na Igreja e na Evangelii Gaudium o Papa Francisco expressa como uma “nova evangelização” é, também, um nova forma de estar na Igreja. Quem sabe se uma nova primavera evangelizadora não começa por aprendermos sempre, cada vez mais e melhor, a deixarmo-nos tocar por Ele.


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