Homilia da Celebração da Paixão do cardeal-patriarca de Lisboa
Nos dias que vivemos e no tempo que sofremos – e muitos bem duramente, por si e pelos seus – cabe perguntar porque estamos aqui e assim reunidos, presencial ou mediaticamente. Nesta Sexta-Feira Santa da Paixão do Senhor, guardando os trechos proclamados, para de seguida adorarmos a Cruz em que Jesus morreu, naquela “hora nona” em que continuamos. – Porquê?
Sabemos como o acontecimento se impôs, apesar de tudo. Apesar de ter sido tão cruel e de pouca gente dar por ele, na tarde em que foi. Fora da cidade, um entre mais condenados, com alguns soldados e um pequeno grupo de fiéis. Mais uma das muitas crucifixões romanas, ainda que especialmente atormentada. Tinha tudo para ser rapidamente esquecida, aquela cruz, por ser apenas mais uma e por ser sinal de maldição para qualquer judeu que fosse: “Maldito aquele que morre no madeiro!”
E, no entanto, impôs-se. Não passaram muitos anos até Paulo exclamar que toda a sua glória estava ali, definindo-se a si mesmo com a cruz: «Quanto a mim, de nada me quero gloriar, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo» (Gl 6, 14).
Não nos pareça isto pouco, ou uma referência ocasional. Na verdade, um dos primeiros milagres do cristianismo histórico foi precisamente a aceitação da cruz – e mais pelos primeiros cristãos do que pelo próprio Cristo. Como ouvimos há pouco, «Ele dirigiu preces e súplicas, com grandes clamores e lágrimas, Àquele que o podia livrar da morte, e foi atendido na sua piedade». Atendido, porque venceu a morte; mas não dispensado de a sofrer assim, para nos acompanhar e salvar na cruz da vida, de cada um e de todos.
Estamos no cerne do realismo cristão, mas não chegaríamos aqui só por nós, mais atreitos que somos a fugir do que a permanecer, quando a vida dói.
Jesus dissera antes: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair» (Jo 6, 43). É este o princípio da resposta, quando procuramos o porquê de aqui estarmos hoje. É Deus Pai que nos chama à cruz do seu Filho, porque dela brota a vida, a jorrar do lado aberto. Porque nela Jesus também “expira”, para que o seu Espírito nos inclua na vida que com o Pai compartilha e em nós se projeta.
Pouco antes, no pretório de Pilatos, Jesus respondera como ouvimos: «O meu reino não é deste mundo». Na verdade, nunca fora nem quisera ser. Mas tal não significa que não seja doutro modo e mais profundo. Como disse a seguir: «Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».
É assim que Jesus reina desde então, atraindo e segurando os que se reveem na verdade que Ele é e escutam a sua voz que os reclama. É esta a razão de estarmos aqui. Razão única, bastante e decisiva.
Há verdade quando a mente se adequa ao objeto. O que nos explica aqui, centrados na Paixão de Cristo, é essa espantosa coincidência do que nela vemos com o que somos realmente, como humanidade sofrida e esperançosa. Como canta um hino, “abraçamos a cruz da vida à luz pura do Seu rosto”.
Desfigurado estava e muito o “mais belo dos filhos dos homens”, aplicando-se-lhe o que ouvimos ao Profeta: «Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto». Porém, manifestava-se na objetividade absoluta da dor que sofria e da misericórdia que derramava sobre os circunstantes.
Eram poucos, mas suficientes para nos representarem a todos: A Mãe e algumas mulheres, o discípulo e até os próprios algozes, que “não sabiam o que faziam”. Aquela objetividade total, onde se figurou o drama humano, de qualquer espaço ou tempo, atrai-nos a mente e o coração e não nos deixa sair de ao pé da cruz, que assim mesmo nos salva.
É deste modo que Cristo reina em nós, pela verdade com que nos atrai e abrange. E assim nos podemos interpretar, a nós e ao próprio mundo, no quinhão que a todos toca de dor e de esperança.
É um reinado em exercício, sempre que escutamos a sua voz e lhe correspondemos de verdade. E onde esta voz ressoa, também o disse e explicou: Foi na cruz, onde disse que tinha sede. E continua, onde nos pede de comer e de beber, onde nos solicita acolhimento ou agasalho, onde nos clama do hospital ou da prisão. Demos a cada um destes clamores o sentido que deva ter, mas não lhes reduzamos a importância essencial e determinante (cf. Mt 25, 37-40). São as fronteiras inclusivas do Reino de Cristo e só dentro delas nos podemos manter como realmente seus.
No fim da grande oração que se segue, pedirei a Deus que “oiça as súplicas dos que O invocam nas tribulações, para que todos tenham a alegria de encontrar nas dificuldades o auxílio da sua misericórdia”.
Sabemos bem que Deus ouve. Mas a sua resposta liga-se à que nós próprios dermos ao que nos pede em Cristo, presente em quem sofre. Quando adorarmos a cruz, oiçamos a sua voz a ressoar em tanto clamor deste mundo e com a firme disposição de lhe correspondermos agora. Atendendo assim, seremos com Cristo a resposta de Deus.
Como ouvimos: «Quando Jesus tomou o vinagre, exclamou: «Tudo está consumado. E, inclinando a cabeça, expirou». Deu-nos o Espírito que aqui nos traz e daqui nos impele, da cruz para o mundo e do mundo para Deus.
Sé de Lisboa, 2 de abril de 2021
D. Manuel, Cardeal-Patriarca