Como o Samaritano, dar uma mão
Quero neste Tríduo Pascal recordar os principais desafios do nosso Programa Pastoral. Em Quinta-feira Santa, dia da Instituição da Eucaristia com o gesto do lava-pés, e da consignação do Mandamento Novo, sublinho as palavras que acabamos de ouvir: “Ele, que amou as seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. “Dei-vos um exemplo, para que assim como eu fiz, vós façais também”. É o amor vivido que se torna exemplo para que também o vivamos.
O Programa Pastoral diz que devemos criar consciência em todas as comunidades de que a caridade é a missão constitutiva de toda a Igreja, devendo ser concretizada em todos os ambientes, particularmente nas famílias. Apoiar as famílias na redescoberta do que significa ser e viver como “Igreja Doméstica”.
Chegámos ao momento alto da nossa caminhada quaresmal. Dissemos que seria marcada por compromissos concretos, a partir do cuidado ao próximo com mãos de samaritano. Neste dia, Jesus quis celebrar a Páscoa judaica, seguindo todas as tradições, mas preparando os Apóstolos para a verdadeira Páscoa que iria inaugurar. Esta teria lugar com a entrega da Sua vida, acontecimento singular, mas a ser vivenciada na experiência da vida cristã. Assim como Cristo deu a sua vida, também o cristão deve dar a vida pelos outros, sempre em gratuidade e generosidade.
Hoje, ao celebrarmos a Instituição da Eucaristia, como prolongamento da Paixão e Ressurreição de Cristo, aceitemos o mandamento novo do amor cristão, que havia sido pregado inúmeras vezes por Cristo mas que agora teria uma explicação através de um gesto que o cristão nunca poderá esquecer. Jesus não só disse aos seus Apóstolos que se deveriam amar, mas concretizou-o realizando um sinal que era característico dos escravos, daqueles que estavam ao serviço dos senhores: lavou os pés. Os Apóstolos, na pessoa de Pedro, não queriam aceitar, mas Cristo quis dizer que o cristão devia andar com a toalha à cintura, pronto para responder às solicitações pedidas, aquelas determinadas pela espontaneidade e exigências silenciosas do amor. A toalha é o emblema do cristão. Não para ser usada para si mas para permanecer como disponibilidade.
Jesus, com a parábola do Samaritano, havia recordado que era necessário amar o próximo, como mandamento que já vinha de longe, mas que importaria saber quem era o próximo. Não é só a família, o amigo, o conhecido. É toda e qualquer pessoa que encontramos na estrada da nossa vida, com necessidades materiais e espirituais. A toalha à cintura explica e abre perspetivas que cada cristão deve intuir e descobrir. Como consequência, a Igreja terá de aparecer diante do mundo nesta atitude de serviço. Talvez o passado nos fale de domínio e centralidade, de uma Igreja voltada para si na defesa das suas verdades. O Espírito Santo está hoje a conduzi-la para o mundo, para aí viver segundo a gramática da atenção, disponibilidade, entrega à causa. Terá de se descentrar e reconhecer que a lógica da toalha terá de ser interpretada em todos os contextos humanos. Se não somos capazes de mergulhar nos problemas humanos, não só para os analisar e apresentar teorias consoladoras, mas para apostar em atitudes que transformem a vida de todos em experiência feliz, não somos a Igreja que Deus quer e o mundo precisa. Temos usado, muitas vezes, a palavra autorreferencialidade. Deve ser banida. A missão acontece onde a Humanidade está ferida. Não é fácil mudar de referência mas é o caminho a percorrer na reforma da Igreja.
A celebração da Instituição da Eucaristia com Cristo no centro da mesa, reunindo os seus Apóstolos, mostra-nos a mesa da Humanidade onde teremos de trabalhar para que todos se sentem, não excluindo ninguém mas garantindo dignidade de vida para todos. Os pobres e os desfavorecidos, com os seus diferentes rostos, são o caminho da Igreja. Não é por acaso que anualmente escolhemos algumas pessoas para a cerimónia do lava-pés. Queremos agradecer o serviço que é prestado em diversas áreas sociais mas alargamos o compromisso perante os variadíssimos desafios que, se estivermos minimamente atentos, não são colocados quotidianamente.
A mesa da Humanidade ainda não oferece iguais situações de dignidade para todas as pessoas. Poucos vão-se banqueteando escandalosamente e uma grande maioria luta pelas migalhas de sobrevivência e consolação. Não ignoramos a grande evolução registada no nosso país. Pretende-se garantir e assegurar igualdade de oportunidades para todos. Mas a mancha social ainda é muito sombria. É neste cenário que a vida da Igreja, para os cristãos e para as comunidades, se movimenta, sabendo que deve ir ao encontro das margens para não esquecer ninguém. Podem ser poucos. Todos estão a pedir-nos proximidade. Numa Igreja que se quer samaritana, teremos de sair de Jerusalém, do templo, para nos dirigirmos à vida dos Homens que encontramos, fora na cidade de Jericó, ou nos caminhos a percorrer. Muito temos feito. Muito mais teremos de fazer.
Nesta Quinta-feira Santa, estou a servir-me de diversos sinais. Não se trata de uma figura retórica. Eles encerram propostas que cada um deve escolher. Que nos poderão sugerir a mesa da Humanidade e a toalha? Ouçamos e juntos discirnamos.
Gostaria de acrescentar outra imagem, situando-me no Programa Pastoral para a Quaresma: as mãos. Sabemos que significam muita coisa. Trata-se da multiplicidade de atitudes que o amor sugere. Podem servir para assinar, contar, ajudar, pedir, acariciar, ameaçar, suplicar, chamar, admirar, brincar, aplaudir, escrever, comer. Poderia continuar e ficaria sempre incompleto. Amar o próximo tem um conjunto de manifestações impensáveis. Daí que o amor é sempre uma escola onde se vai aprendendo para reconhecer que sabemos muito pouco desta arte de amar. Quando antes convidei para que saíssemos para fora, quero reconhecer que o próximo é aquele que caminha connosco no dia-a-dia. Todos são candidatos a que os amemos com gestos novos a sugerir pelo coração. Nunca me cansei de dizer que precisamos de nos amar, cada dia de um modo diferente, em casa, no trabalho e na comunidade. As comunidades paroquiais são muito amorfas, distantes, frias. Precisamos de criar proximidade e de mostrar que a vida dos outros nos interessa e diz respeito. Habituámo-nos com facilidade e não damos ao mandamento novo a expressividade que deve ter. A sinodalidade também quer dizer isso e ser bom samaritano para o outro não é só para os momentos de dor e de luto. A vida deve ser cheia de gestos que demonstram o que somos. Não podemos ficar na profissão de fé. Teremos de dar vitalidade no concreto da vida.
Acrescento, ainda, um outro significado à palavra mãos. Usamos com frequência a expressão dar uma mão. Numa Igreja sinodal é fundamental que o façamos, colocando cada um em jogo na responsabilidade que lhe compete na missão eclesial e que corresponde ao exercício de uma cidadania participativa. Responsabilidade e cidadania não estão muito presentes numa sociedade alicerçada no egoísmo e no individualismo. Vimos como é fundamental sentir-se no mesmo barco e remar juntos nas águas agitadas da atualidade. Vamos, por isso, dar uma mão para uma Igreja mais comunitária ao serviço de uma sociedade mais igual.
Tudo começa por querermos dar uma mão na edificação da família. Não basta juntar pessoas para que a família aconteça. É um trabalho persistente de todos os membros. Mais uma vez, e peço desculpa por voltar a insistir, aponto a meta de famílias como igrejas domésticas. Acredito que o futuro da Igreja passará muito por aí. Há caminho percorrido mas necessitamos de muito mais. Terão de ser as famílias a consolidar um esquema constitutivo do que isto significa para ir em envolvendo outras. Sem experiências concretas nunca teremos razões motivadoras, por muitas lições que dêmos. Já temos algumas experiências. Muitos poderão pensar que é utópico. A experiência dos primeiros cristãos confirma que é o caminho a percorrer no meio de uma sociedade que se diz indiferente mas que muitas vezes é hostil. Daí que, neste ambiente de Quinta-feira Santa, especial na sua celebração por causa da pandemia, pensando nas aventuras que o mandamento do amor poderá solicitar a partir da simbologia das mãos, peço aos nossos cristãos: Vamos dar uma mão na edificação de famílias, comunidades de amor, responsáveis pela Igreja e sociedade.
Alargando o âmbito da ação, renovo o apelo, tão bem formulado muitas vezes, para dar uma mão na edificação de comunidades cristãs, a partir das paróquias e dos santuários. Sabemos o caminho. “Viver intensamente a caridade para oferecer um rosto sinodal e samaritano à Igreja, que se faz próxima para cuidar e acompanhar como Jesus Cristo, Bom Samaritano”. Na celebração da centralidade da nossa fé, revelada em Cristo pela Palavra enunciada mas sobretudo imolada na entrega da vida por amor para reunir o povo que andava disperso, não podemos viver de palavras. Somos cristãos de obras e as nossas comunidades necessitam de mais entusiasmo e dedicação. S. Paulo referia que ainda não foi até ao sangue a nossa luta pela realização de um mundo mais fraterno. Não é ousadia reconhecer que as comunidades deveriam ser um esboço de uma sociedade nova. A carta a Diogneto, nos inícios do cristianismo, reconhecia que os cristãos não se diferenciassem dos outros no estilo de viver mas tinham uma alma que os comprometia no testemunho de um amor comunitário que mostrava a validade da experiência revolucionária que está a iniciar.
As comunidades necessitam de uma nova vitalidade nascida da plurifacetada maneira de viver o amor. A predileção deve ir para os pobres e mais necessitados mas entre todos terá de correr uma seiva que motiva para mostrar que apenas o amor permanece. Vamos dar uma mão na edificação de comunidades a nascer e a crescer através da Palavra, reunidas em celebrações alegres e Festivas, e a criar dinamismo novo para ir ao encontro do mundo a evangelizar.
A vida cristã não pode ficar numa aventura pessoal e comunitária. É inútil se não se torna fermento na sociedade. É mais uma vertente frequentemente solicitada mas ainda com pouca incidência concreta. O amor cristão tem de chegar às realidades terrestres. Por isso, vamos dar uma mão na edificação de uma sociedade mais humana. Jesus mandou os seus discípulos percorrer as estradas do mundo e enviou os dois a dois. O mundo é o estádio para cada cristão jogar a vida cristã. Não o poderá fazer sozinho. A sua responsabilidade é única e insubstituível. Sem companheiros de jornada os resultados serão residuais. Teremos de ir concretizando verdadeiras células de ambiente para colocar o Evangelho no coração dos espaços vitais, de modo a criar uma rede que capilarmente vai influenciando a sociedade.
O Papa Francisco afirma que a evangelização hoje terá de ser por transbordamento. Possuídos pelo amor de Deus, vamos derramando nos problemas e alegrias da vida concreta. A medicina, a política, o ensino, à saúde, a economia estão a precisar de algo que lhe podemos dar. Parece que tudo caminha à margem do Evangelho. O amor é operativo. Vamos dar uma mão na edificação de uma sociedade que abarca uma infinidade de desafios esperando alguma coisa que mostre que o caminho deve ser diferente.
Depois da Ceia, Jesus dirigiu-se para o Jardim das Oliveiras e iniciou a missão para a qual for enviado pelo pai. Os discípulos dispersaram-se. Ficou sozinho. Todos o abandonaram. Hoje não podemos abandonar. Teremos de estar com Ele aceitando o caminho a percorrer. Fazemo-lo todos juntos e nunca esquecendo que na mesa da fraternidade teremos de colocar a toalha para servir, dando uma mão na edificação de famílias igrejas domésticas, de comunidades verdadeiramente cristãs e de sociedades humanas com o fermento do Evangelho. Mais uma vez repetimos apelos muitas vezes formulados. Não só manifestemos a vontade de dar uma mão mas com Cristo, agora vivo e cooperante na Eucaristia que instituiu para ficar connosco, mãos à obra. Não estamos sozinhos. Assim, família é o princípio e o motivo da Igreja renovada e de uma sociedade humanizada. Trabalhemos para que se torne o que é. O resto acontecerá.
D. Jorge Ortiga
Arcebispo Primaz