Homilia de D. António Marto na celebração do Dia Mundial do Doente

O mundo do sofrimento clama pelo mundo do amor compassivo

É com alegria, e ao mesmo tempo com emoção, que em nome da Conferência Episcopal Portuguesa, me encontro aqui, na Basílica de Nossa Senhora do Rosário, a presidir à Eucaristia no Dia Mundial do doente. Celebramos sem a presença dos fiéis para respeitar a exigência do confinamento a que a pandemia nos obriga. Todavia a ausência e a distância é só física.

Estais presentes aqui, na comunhão de santos, todos os que vos unis à nossa celebração pelos meios de comunicação, aqueles que, nos seus lugares de trabalho, se associam pela intenção íntima do coração, e de modo particular, todos os doentes, em especial as vítimas da doença Covid-19, vivos ou defuntos, e os seus familiares, bem como todos os profissionais de saúde e cuidadores que assistem ou assistiram estes doentes.

Em nome pessoal e dos bispos portugueses, desejo saudar e fazer chegar a todos a nossa proximidade, o nosso grande afeto, o apoio da nossa oração. Com esta celebração, quisemos dar sinal significativo da união espiritual, do conforto e da solidariedade de toda a Igreja portuguesa a todos os doentes, a todos os profissionais de saúde, a todos os cuidadores e a todos os que garantem serviços e bens essenciais.

A doença é uma caraterística ineludível da existência humana, a ponto de se tornar uma metáfora realista da nossa condição como santo Agostinho bem o exprime em forma de oração: “Ai de mim! Tem piedade de mim, Senhor. Vê: não te oculto as minhas feridas. Tu és o médico; eu sou o doente. Tu és misericordioso; eu sou um miserável. Acaso a vida do homem sobre a terra não é uma provação?” (Conf. X, 39).

A doença é, de facto, uma das experiências mais duras do ser humano. Sofre o enfermo que sente a sua vida, porventura, ameaçada e se interroga: porquê? Para quê? Até quando? Mas sofre também a sua família, os seres queridos e os que o assistem.

A pandemia constitui um choque, um abalo, que nos faz sentir mais agudamente a fragilidade da vida. Verificamos como a doença abre em todos muitas feridas e acarreta muitos sofrimentos: feridas do medo da doença, da dor, do isolamento, da solidão, do receio de perder o emprego, da angústia da morte. Há mortes prematuras e outras na maior solidão, que deixam feridas abertas nos familiares: nos pais e nos filhos, nos órfãos, nos viúvos e viúvas, sobretudo naqueles que não puderam dizer uma palavra ou um gesto de adeus aos seus entes mais queridos, nem realizar um funeral à altura de quem parte, que ficam num estado de luto suspenso e amargo.

Quantas vezes escutamos histórias de doenças, de sofrimento, de luto, de desânimo e desalento, de verdadeira cruz. Encontramos deste modo muitas feridas físicas, psíquicas e espirituais que invocam reconhecimento, partilha e cura. São brechas a reparar e feridas a curar. Precisamente por isso, evoco-as aqui porque precisam de ser rezadas diante de Deus, seja em forma de gemido, seja em forma de grito de dor. Deus recolhe as nossas lágrimas, porque não lhe são alheios os nossos lamentos (cf. Sl 56,9)

Embora a doença faça parte da experiência humana, nós não conseguimos habituar-nos a ela porque, por vezes, é grave e pesada, por isso, difícil de suportar. Para cada um, o sofrimento é sempre um estrangeiro. A sua presença não é domesticável. Sem a ajuda do Senhor, o jugo da doença e do sofrimento é demasiado pesado. Como podemos e devemos reagir enquanto cristãos?

Naturalmente, em primeiro lugar, com os cuidados e tratamentos que a medicina nos oferece e que, nos últimos decénios, tem dado passos de gigante. Por isso devemos estar muito gratos e, neste momento, até por nos proporcionar com tanta rapidez a vacina como uma luz para sair da pandemia. Mas a Palavra de Deus ensina-nos que há uma atitude decisiva para enfrentar a doença: a fé em Deus e na sua bondade. Porque a doença não é algo de abstrato. Tem sempre o rosto de cada doente, que não pode ser reduzido a um número, a um relatório clínico. Cada doente é uma pessoa única, uma vida de relações, um coração com sentimentos e anseios, uma história singular. “A doença impõe uma busca de sentido que na fé se dirige a Deus à procura dum novo significado e sentido para esta etapa da vida e de orientação para a existência” (Mensagem do Papa para o Dia Mundial do Doente 2021).

Nesta experiência de fé, Nossa Senhora, que hoje invocamos como “Saúde dos enfermos” é nossa mestra e guia. Com o seu testemunho, podemos dizer que Ela escreveu e ensina-nos o Evangelho do sofrimento, que “consiste em fazer bem a quem sofre e fazer bem com o próprio sofrimento” (São João Paulo II). Vejamos como Maria nos ensina este Evangelho.

No apoio oferecido por Maria à prima Isabel, que vivia uma situação delicada de gravidez de risco, como diríamos hoje, na sua idade avançada, vemos aí o exemplo do cuidado, feito de amor, ternura e auxílio à pessoa necessitada.

No seu canto do ‘Magnificat’ exalta as maravilhas da misericórdia de Deus. Não é o cântico daqueles a quem sorri a fortuna, a quem a vida corre de vento em popa. É, sim, o agradecimento de quem conhece os dramas da vida, mas confia na misericórdia de Deus. É um canto que exprime a fé provada de gerações de homens e mulheres que puseram a sua esperança em Deus e se empenharam como Maria a ser ajuda aos irmãos necessitados. Quem permanece próximo das pessoas que sofrem, conhece bem as angústias e as lágrimas, mas também a alegria que é fruto do amor com que cuida.

Aos pés da cruz, a sua compaixão materna com o Filho que assumiu sobre si as dores da humanidade, torna-se também compaixão nos sofrimentos e dores de todos os seus filhos sobre a terra, confiados ao seu coração de mãe. Em Fátima como em Lurdes, na sua mensagem, manifestou uma solicitude especial pelos que sofrem: “E tu sofres muito? Não tenhas medo. Nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus”.

Deste modo, repete para nós hoje o convite de Jesus: “Vinde a mim, todos vós que estais fatigados e oprimidos e eu vos aliviarei. O meu jugo é suave e a minha carga é leve” (Mt 11, 28).

Os santos pastorinhos, vítimas também eles de uma pandemia, da pandemia pneumónica, são exemplo da vivência do sofrimento, com a fortaleza que encontravam na união com Cristo e em solidariedade com todos os sofredores, os pecadores e a paz no mundo dilacerado por uma grande guerra. Disso é testemunho a expressão tão simples e repetida que saía da sua boca e do seu coração: “Sofro tudo por amor de Jesus”.

Ao sofrimento, Jesus não respondeu com uma lição teórica, mas com a sua presença de amor que está a nosso lado e nos dá força para suportar e superar a nossa fragilidade, como reza o Salmo 15: “Com Ele a meu lado, não vacilarei”. O mundo do sofrimento clama pelo mundo do amor. É o amor que nos dá olhos para ver, um coração para ser sensíveis, inteligência para ser criativos de cuidados e terapias e mãos para levar ajuda.

O mandamento do amor realiza-se hoje na relação de cuidado para com os membros enfermos. “Uma sociedade é tanto mais humana quanto melhor sabe cuidar dos seus membros frágeis e sofredores e o sabe fazer com eficiência animada por amor fraterno” (Mensagem do Papa para o Dia Mundial do Doente 2021). Isto, nem os governantes nem os cidadãos deveríamos ignorar, esta lição. “Investir recursos nos cuidados e na assistência às pessoas doentes é uma prioridade ligada ao princípio de que a saúde é um bem comum primário” (Mensagem do Papa para o Dia Mundial do Doente 2021).

Também hoje para a Igreja, este cuidado não é algo acessório ou opcional. Faz parte da missão que Jesus lhe confiou: levar a proximidade, a ternura, a compaixão, o conforto e apoio a todos ao que sofrem. Cada um de nós pode dizer: “Todas as vezes que cuido dum irmão enfermo, que ajudo a curar uma ferida, a enxugar uma lágrima, a dar conforto estou a colaborar na obra salvação de Cristo”. Cada comunidade cristã é chamada a realizar esta missão localmente. No seu próprio território.

A todos os que sofrem façamos, pois, sentir a nossa proximidade material e espiritual. É importante não os deixar no abandono e na solidão, quando se encontram a enfrentar um momento tão delicado ou duro da sua vida. Que ninguém se sinta só nem abandonado.

“Não tenhais medo”, diz-nos Jesus hoje, no meio da tempestade pandémica, furibunda. “Não tenhas medo. Eu nunca te deixarei. O meu Imaculado Coração será o teu refúgio”, repete Maria hoje, a cada um e a cada uma de nós. São palavras que iluminam o nosso caminho, mesmo quando parece desvanecer-se o sentido da esperança e a certeza da cura. São palavras de conforto e para quantos são atingidos por doenças graves e dolorosas.

Confiemos a Nossa Senhora da Saúde todos os que sofrem e todos os profissionais da saúde e cuidadores que os acompanham, para que possam sentir o conforto da sua ternura e proteção materna, e o alívio do sofrimento. Confiamo-nos todos ao seu Imaculado Coração, para que com a sua poderosa intercessão ajude a aliviar a humanidade aflita por esta pandemia.

Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, 11 de fevereiro de 2021

Cardeal António Marto, bispo de Leiria-Fátima

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Agência ECCLESIA

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