A eterna lição do Natal
De novo em Natal, para um Natal sempre novo. Assim podemos dizer e assim deve ser, hoje também. Hoje, quando as condições sanitárias nos obrigam a grandes cuidados e nos restringem as habituais convivências. Hoje, quando tantas famílias se preocupam com algum membro atingido pela pandemia e tantos profissionais da saúde se desdobram no tratamento de doentes. Hoje, quando os responsáveis dos vários setores se mantém vigilantes e ativos para que a vida de todos se mantenha segura e sustentável. Hoje, quando ainda há tanto a fazer para que a ninguém falte abrigo, alimentação e trabalho. Hoje, quando os nossos idosos não podem receber as visitas dos seus e tantos cuidadores se desvelam para não lhes faltar o conforto. Hoje, quando por esse mundo além e aquém se multiplicam refugiados e emigrantes forçados, que têm inegável direito a ser acolhidos e respeitados em qualquer lugar onde cheguem. Não consta que São José tenha encontrado dificuldades de maior, quando se refugiou no Egito, com o Menino e Sua Mãe.
Hoje, da parte de Deus, é seguramente Natal. Da nossa parte há de sê-lo também, no que a cada um lhe caiba e no que a todos compete. Da parte de Deus, como em Belém de Judá há dois milénios, aconteceu com tal força própria que acabou por se repercutir na cultura e na sensibilidade humanas, com inegável persuasão e até para além da confessionalidade estrita.
Mesmo quando não o celebram liturgicamente, mesmo quando as circunstâncias parecem contradizê-lo, mesmo quando não o nomeiam expressamente, homens e mulheres do mundo inteiro, crianças, adultos ou idosos, esperam o “Natal”, buscam-lhe os sinais e adivinham-lhe a necessidade, ainda como esperança. Desejam que “seja Natal todos os dias”, aspiram à paz que anuncia, descontentam-se por não ser assim, finalmente e já.
O Natal de Cristo tornou-se lição universal e este dia é o seu exame para todos. – Como nos classificaremos este ano, depois das dificuldades enfrentadas, pessoal, social e até eclesialmente falando? Positiva é certamente a nota relativa à vontade de responder às incidências da pandemia, por entidades públicas e particulares. Vontade de responder que foi geral e muitas vezes abnegada, aumentando o esforço e superando lacunas, também por parte de paróquias e instituições religiosas. Mas é essa boa vontade, solidária, competente e criativa, que permitirá aumentar ainda mais a classificação geral das provas natalícias de ano para ano.
Se a lição do Natal se tornou tão forte e duradoura, tal se deve essencialmente ao facto de ser divina, surpreendentemente divina. As lições que a humanidade pretende dar-se só por si, valem o que valem, por vezes muito, mas sempre de menos. Nunca conseguem ir além do humano, demasiadamente humano, mesmo que se destinem a todos, ou a todos se queiram impor.
Nas sucessivas formas culturais e civilizacionais, marcam-se inícios, apogeus e declínios. Nunca se volta exatamente ao ponto de partida, porque algo se acumulou entretanto, como experiência convivida e alguma inovação alcançada. Mas nunca basta e somam-se interrupções e atrasos. Por vezes apresentam-se como “progressos civilizacionais” autênticos retrocessos humanitários, como no que diz respeito à integralidade da vida humana, quando deixa de ser legalmente protegida em todo o seu devir e não se usam os recursos que o progresso científico nos oferece para o fazer, de forma positiva e generalizada, até ao termo natural de cada um.
A lição do Natal é divina, porque ninguém o imaginava do modo como realmente foi. Desde que a humanidade ganhou consciência de si, manifestou vontade em ter alguma ciência da divindade, plural ou singular. Mas dificilmente saiu de si própria, transpondo-se para o além, agigantando a sua pequenez, procurando segurança algures. Dos primeiros traços que deixou, nas paredes de grutas ou construções pré-históricas, aos grandes edifícios dos primeiros e últimos impérios, ressalta sempre e sobretudo a projeção humana além de si – hesitante, situada e finalmente impossível.
Mas «o Verbo fez-se carne e habitou entre nós. E nós vimos a sua glória…». Neste magnífico hino das origens cristãs, está a lição do Natal plenamente enunciada, colocando-nos a atenção, a contemplação e a devoção no exclusivo ponto onde devem estar, isto é, na irredutível iniciativa divina.
Não seremos nós a dizer Deus, é Deus que unicamente se diz. Podemos concluir que razoavelmente é assim e sem alternativa capaz. Mas a iniciativa foi sua e em pleno contraste com qualquer construção humana, por mais intelectual e bem propositada que fosse.
Deus verbaliza-se, diz-se naquele Menino único onde cabem todas as idades, ligando a fragilidade da carne à realidade absoluta d’Aquele que a assume e ressuscita. Não deixará de ser “carne”, sentindo e sofrendo, do presépio à cruz, mas sanando-a pela constante ligação a Deus Pai, no Espírito que compartilham e nos inclui também.
Esta autorrevelação de Deus, dito em Jesus, seu Verbo incarnado, aconteceu ali, naquele tempo e lugar. Mas, exatamente por ser divina, irrompe por todo o espaço e tempo, preenchendo toda a “carne” da humanidade que sente e que sofre, que ri e que chora, que oferece ou implora.
Deixemo-nos surpreender pela constante e inesgotável lição do Natal. Este é o presépio a que devemos acorrer como os pastores, gente pobre e disponível; ou depois os magos, gente desinstalada e à procura. Com todas as figurações que o seu dia-a-dia nos trouxer, aí mesmo e só aí “veremos a sua glória”.
Santo Ireneu, no segundo século cristão, escreveu que «a glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus». Felicíssima síntese e arco perfeito, de Deus para o homem e do homem para Deus, como no Natal se admira e contempla. Na humanidade renascida do Verbo incarnado está a glória de Deus, a plena manifestação do seu poder, que é o seu amor criador.
Não o perdendo nunca, da vista e do coração, viveremos também e plenamente. Com o salmista cantaremos: «Em Vós Senhor está a fonte da vida. Na vossa luz veremos a luz» (Sl 36, 10)!
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2020
D. Manuel Clemente, cardeal-patriarca