Corpus Christi: entre o sagrado e o profano

A devoção ao Santíssimo Sacramento está na origem de muitas das páginas escritas de interesse religioso, cultural e popular que a História regista no nosso país. Desde o século XII, quase não há em Portugal cidade ou lugar com alguma importância que prescinda da celebração da festa do Corpo de Deus, invocadora do “triunfo do amor de Cristo pelo Santíssimo Sacramento da Eucaristia”. Ao longo dos tempos, estes festejos e a procissão que lhes corresponde são dos acontecimentos mais solenes e mais majestosos de quantos se realizam entre nós. Olhar para as celebrações do Corpo de Deus é olhar para a história de um povo que tem fé e tem na devoção ao Santíssimo Sacramento uma das referências e um dos sinais mais antigos da sua fé cristã, de tal modo que a devoção ao Santíssimo Sacramento pode dizer-se apropriada pelo sentimento do povo português. Desde a sua origem, a procissão do Corpo de Deus apresentou sempre duas facetas distintas: uma religiosa, outra profana. O espírito inventivo nacional cedo introduziu figuras gigantescas – certamente para dar maior espectacularidade ao desfile: Gigantes, o Demónio, a Serpente e o Dragão. “É a memória do culto e devoção, de usos e costumes que se intrometeram, de desvarios, abusos e extravagâncias, denunciados por alguns mas mantidos, apreciados e até exigidos por muitos para quem, como é frequente, vale menos o rigor e a ortodoxia do que a alegria, o entusiasmo, a festa contagiosa, a tradição atraente”, como explicava o Bispo do Porto, D. Armindo Coelho, numa homilia proferida nesta Solenidade. As celebrações seiscentistas em Penafiel incluíam a obrigação de figurarem na procissão, além da nobreza, vinte e duas categorias profissionais, mesmo as mais modestas, como os jornaleiros e pastores. Era também obrigação que os nobres e mercadores se apresentassem no cortejo munidos de tochas, cabendo ainda a estes últimos, em parceria com os merceeiros, a oferta de um touro.Ainda hoje se mantém a tradição do cortejo profano, integrado na procissão: terno de clarins a cavalo, ajaezados à maneira do século XV, Bandeira Nacional ladeada por dois lanceiros em grande uniforme; séquito de cavalos ajaezados com xairéis e talizes armoriados. Serpe; Estado de S. Jorge, a cavalo, ladeado por dois criados; pagem a cavalo; Boi Bento; Carro Triunfal com anjinhos e encimado pela Figura da Cidade vestida à romana. A figura da Coca (dragão) domina as festividades em Monção (Minho). Manifestação religiosa e popular celebrada, ao que se supõe, desde o final do século XIV, a festa da Coca continua a realizar-se no Dia do Corpo de Deus, com respeito pelas tradições que a caracterizam, desde há séculos.Pode surpreender o surgimento desta figura grotesca, mas na festa celebra-se o triunfo do amor de Cristo sobre o demónio, a vitória do bem sobre o mal, simbolizada no combate entre São Jorge e o dragão (sempre com o primeiro a sair vencedor). Em Nisa (Alto Alentejo) o relevo da festa era enorme no século XVIII, quando se determinava que “cada uma das pessoas de cada casa fosse sujeita a incorporar-se no cortejo processionário, assim como os artífices das várias profissões”. Os ferreiros traziam a imagem de São Jorge; os sapateiros, barbeiros, alfaiates, tecelões, cardadores e moleiros levavam, em andor, a imagem de São José. A procissão conserva, actualmente, uma dimensão significativa, onde desfilam os estandartes das instituições e colectividades. Como em muitas outras localidades do país, Vila Verde, Concelho de Alijó, realiza uma majestosa Procissão, com belíssimos tapetes de flores – numa alusão ao povo de Jerusalém, que atapetou seus caminhos com flores e ramos de oliveira para a passagem de Jesus. Semanas antes, crianças, jovens, adultos, e mais idosos, iniciam a azáfama da procura e do corte de flores naturais, pelos campos, quintais e jardins particulares, cujos donos o permitam; amigos e vizinhos colaboram, pedem, colhem e transportam flores. s tapetes de flores não são inéditos ou originais de Vila Verde, talvez o que o distinga seja o facto de a aldeia se dividir em dois grupos, um designado “Capela” e que ornamenta as ruas da parte da frente da igreja e o outro, o “Cabo”, encarregado das ruas traseiras da igreja.

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